Hoje a nossa já tradicional seção do Ouro de Tolo será um pouquinho diferente. Através de dois sambas e três desfiles, farei uma homenagem e uma reverência ao maior presidente da história da minha Portela, Natalino José do Nascimento, o Natal da Portela (1905-1975).

Natal foi homenageado pela primeira vez no carnaval portelense de 1984, “Contos de Areia” – vídeo acima. O enredo era uma homenagem a três baluartes da escola: Natal, Paulo da Portela e Clara Nunes, relacionados, respectivamente, a Oxóssi, Oranian e Yansã.

A sinopse dos carnavalescos Edmundo Braga e Paulino Espírito Santo era bem clara:

“Portela – Cantando sua gente falamos de você !

… e estava escrito. Quando o beato Padre Anchieta escreveu o poema sobre a virgem santíssima nas areias da beira mar, estava sem dúvida compondo também um canto de louvor a Yemanjá, pois nessa terra o sincretismo religioso e a miscigenação já eram uma decisão do criador.

Com os negros cativos no banzo da saudade, viajaram nos caminhos do medo e da humilhação os orixás mais temíveis e amados para renascerem em terra casta nos filhos dos seus filhos, e na dinastia de “Reis Negros” para serem perpetuados em ritos-mitos e dengos. E hoje mesmo que as águas das marés do tempo cubram de espuma o mito de cada um de nós escrito nas areias da praia gravado ficará para sempre na memória dos espaços infinitos os nossos CONTOS DE AREIA.

ABERTURA

Se a lenda é irreal e a história tradição, nada mais lógico que seja a Bahia o cenário da intimidade entre homens e Deuses porque a velha Bahia é….
… o berço da história
… a terras das lendas
… a tendas dos Orixás
… o santuário dos Deuses Negros

MOMENTO I

1º Conto
De como Oranian, Orixá Negro por designo de Olorun, senhor da vida e da morte, criou do nada com seu manto azul o céu, o mar, a terra.

1º Mito
De como um sambista influenciado por Oranian criou do nada o riso, a amizade, a beleza em azul e branco: a Portela. O ABC de Paulo Benjamin de Oliveira (Paulo da Portela)

MOMENTO II

2º Conto
De como o Rei Keto-Oxóssi, zelador dos homens e bichos, dominou os espaços verdes, campos e cerrados para que a criação perpetuasse nas glórias de Orum.

2º Mito
De como um sambista influenciado por Oxóssi um Deus Negro, forjou e perpetuou o Santuário do Samba – A Portela. Dono de bicho, amigos dos homens, sambista de fé…. O ABC de Natalino José do Nascimento (Natal)

MOMENTO III

3º Conto
De como Oiá Yansã, Orixá Rainha Guerreira – deusa dos homens – soberana dos Eguns, bailou nos ventos e rasgou o tempo, tecendo com o jogo dos céus acordes de glórias e brandos de luta.

3º Mito
De como uma sambista da mais pura tradição mestiça, deusa do branco amor e paz, fulgor azul dos raios da guerra, cantou as tradições, glórias e hinos de luta da sua escola Portela.

MOMENTO IV

FINAL – PORTELA NA AVENIDA
Razão única deste enredo

E no Panteão Azul e Branco, Portela e outros deuses negros se fizeram presentes para que incorporados em seus súditos formassem a constelação fulgurante das estrelas gloriosas.
Águias de ouro de brados e luta.
Águias de prata de luz e paz.
No azul a homenagem viva dos que aplaudem os que agora na Avenida desfilam.
No branco a glória eterna aos que nas saudades nos guiam.
Para que hoje fosse o exemplo do passado e que no futuro cada um de nós tenha gravado na memória dos tempos.
Nossos feitos – nossas glórias – nossos CONTOS DE AREIA !

(Fonte: Galeria do Samba)

A Portela desfilou já na manhã de segunda feira de carnaval daquele 1984, estréia do Sambódromo, com 5.000 declarados componentes. Reza a lenda de que, enquanto os primeiros desfilantes já deixavam a dispersão, ainda haviam alas em frente ao prédio dos Correios aguardando a sua vez de passar pela avenida, tamanho o gigantismo da Portela.

Com 203 pontos, a escola foi a campeã do desfile de domingo daquele ano, obtendo posteriormente o segundo lugar no supercampeonato disputado no desfile do sábado das campeãs.

O samba, de autoria de Dedé da Portela e Norival Reis e puxado por Silvinho, é um clássico:

“Bahia é um encanto a mais
Visão de aquarela
E no ABC dos orixás
Oranian é Paulo da Portela
Um mundo azul e branco
O Deus negro fez nascer
Paulo Benjamim de Oliveira
Fez esse mundo crescer

Okê, okê Oxossi
Faz nossa gente sambar
Okê, okê Natal
Portela é canto no ar

Jogo feito, banca forte
Qual foi o bicho que deu ?
Deu Águia, símbolo da sorte
Pois vintes vezes venceu

É cheiro de mato
É terra molhada
É Clara Guerreira
Lá vem trovoada

Epa-hei! Iansã Epa-hei !

Na ginga do estandarte
Portela derrama arte
Neste enredo sem igual
Faz da vida poesia
E canta sua alegria
Em tempo de carnaval

Em 1987 a Tradição, escola fundada no final de 1984 a partir de uma dissidência da Portela, estreou na Passarela do Samba, desfilando pelo hoje Grupo de Acesso A com uma homenagem a Natal da Portela.

Explico: naqueles tempos haviam apenas quatro grupos de escolas. Os dois primeiros desfilavam no Sambódromo e os demais, em outros espaços. O segundo grupo desfilava na sexta feira de carnaval e o sábado era reservado aos blocos de enredo.

O enredo era de autoria do mesmo Paulino Espírito Santo, carnavalesco portelense em 1984. Evocava a história de vida de Natal da Portela, sendo dedicado exclusivamente a ele.

Belo samba, era de autoria da dupla João Nogueira e Paulo César Pinheiro e puxado por Kandonga. Com ele, a Tradição alcançou o vice campeonato do segundo grupo, empatado em pontos com a Unidos da Tijuca; entretanto perdeu no desempate. Assim mesmo, o resultado serviu para que a escola fosse promovida, pela primeira vez, ao Olimpo do samba.

O curioso é que a escola obteve 203 pontos, igual ao total obtido pela Portela em 1984.

Vamos à letra, do tempo em que a Tradição ainda era uma escola séria e não este pastiche a que assistimos anualmente:

“Vem chegando a Tradição
Benzendo o chão da passarela
E pra falar nos Sonhos de Natal
Pedimos licença a nossa querida Portela
Entre Oswaldo Cruz e Madureira
Ele pôs sua bandeira
E fez seu estado maior
Senhor da fé e patrono da alegria
Samba, jogo e valentia
Comandou com um braço só
Com um braço só
Com um braço só, já dei tapa em vagabundo
Dei a volta pelo mundo mas também já fiz o bem
Com um braço só, vou viver a vida inteira
Mandando em Madureira e em outras terras também
Oh Natal
Oh Natal que saudade
Foram dezenove Carnavais
Toda cidade era felicidade
Sonhos bonitos que já não voltam mais
Vem e guia seus filhos
No derradeiro sonho do seu coração
Volta pra avenida iluminada
Mostra pra rapaziada
Que é a Tradição
Chegou, chegou mas só vem quem quer
Quem é sonhador, como a gente é
Chegou, chegou pra dizer no pé
Respeitando os sonhos do senhor da fé

Em 2004, a Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa) propôs que as escolas reeeditassem antigos sambas na comemoração de seus 20 anos de existência, como escrevi no texto sobre “O Círio de Nazaré”.

E o que faz a Tradição ? Em acordo com a escola da qual se originou, resolve reeditar o mesmo samba de 1984 trazido pela Portela na ocasião.

A sinopse dava bem uma medida dos novos tempos que vivia o desfile das grandes escolas de samba do Rio de Janeiro. Somente a introdução, que reproduzo abaixo, era maior que a sinopse inteira de 1984. Depois reclamam porque, ano após ano, os sambas só pioram…

Passemos à introdução do enredo, na sinopse:

“Enredo: Contos de areia – Paulo da Portela, Natal e Clara Nunes
Autores do enredo: Edmundo Braga e Paulino do Espírito Santo
Carnavalesco: Orlando Júnior
Elaboração de Enredo: Hiram Araújo, Vicente Dattoli e Ricardo Cravo Albin

Tal e qual a Liga Independente das Escolas de Samba, a Tradição completará, em 2004, 20 anos.
Somos a caçulinha do Grupo Especial.
Quando a Liga sugeriu que, para comemorar seu vigésimo aniversário, as Escolas reeditassem antigos sucessos, imediatamente a Tradição começou a buscar, entre as co-irmãs, um samba (e um enredo) que pudessem fazer parte desta festa – nossa Escola não teria algo de seu para exibir.
E isso ficou na mente de nossos diretores e simpatizantes.
Com a liberação, por parte da Liga, dos rumos a seguir, passamos a estudar outras possibilidades de enredo.
Batia forte, porém, dentro de nós um desejo…
Fomos procurados por amigos que tinham grandes idéias.
Empresas nos assediaram… Enfim, opções não faltavam.
Mas continua latente em todos nós a vontade de falar de algo que preenche nossas vidas: falar do Carnaval, de pessoas amigas, de gente do samba.
Muitos de nossos fundadores (para não exagerar e dizer todos) eram – alguns ainda o são – componentes da Portela.
Portela tantas vezes campeã. Portela de Paulo, Portela de Natal, Portela de Clara…
Como não somos donos de nossas vidas, em 1984 muitos de nós realizaram seus últimos desfiles na Portela.
Conquistamos o título do desfile de Domingo de Carnaval.
Inesquecível.
Agora, com a possibilidade que a Liga nos abre, vamos falar exatamente daquele samba, daquele enredo.
Infelizmente muitos dos que ajudaram a realizar aquele sonho não estão mais conosco. Pelo menos não aqui – mas certamente vibrarão ao ver o que iremos preparar para o grande público da Sapucaí.
Com a bênção de Paulo, de Natal e de Clara, a Tradição tem o prazer de apresentar para quem não conhece, e relembrar para quem não esquece…
“Contos de Areia”

E estava escrito…
Quando o beato padre Anchieta escreveu o poema à Virgem Santíssima nas areias à beira mar, estava sem dúvida compondo também um canto de louvor a Iemanjá, pois nesta terra o sincretismo e a miscigenação já eram decisão do Criador.
E não era presságio, era afirmação quando os antigos, negros como noite, carapinhas prata de luar passavam de boca em boca, nos seus risos banguela os cantos mais secretos e mitos nos longínquos tempos de abeucuta – Óio e Keto.
Afirmavam que seus deuses mais queridos, orixás mais temíveis, voariam com seu povo cativo na humilhação e na escravidão renasceriam em segredo nos filhos dos seus filhos, nos netos dos seus netos, em terra casta de além mar para serem cultuados e perpetuados em ritos, mitos e dengos.
A escravidão do tempo chegou e ficou, até que os raios da aurora rasgassem o véu negro da noite e a luz trouxe o presente.
E nas praias molhadas de mar – outra vez Contos de Areia são escritos, poemas cantados, rabiscos gravados mostrando que cada um de nós – grão de areia – incorpora uma personalidade mística ancestral, vinda de longe, para formar no santuário negro e sacro mosaico dos nossos destinos.
Mesmo que os ventos quentes dos desertos nos seus redemoinhos frenéticos espalhem as douradas dunas e com a sua dança lasciva apague os poemas e memórias neles escritos.
Mesmo que as águas azuis das marés cubram de espuma o mito de cada um de nós, escritos nas areias das praias – gravados ficarão para sempre na memória dos espaços infinitos os “Contos de Areia”

ABERTURA:
Todo conto – contado
Reza – rezada
Mito – narrado
Sonho – sonhado

Precisa de um lugar para ser contado – rezado – narrado – e sonhado.
Se a lenda é fantasia, e a fantasia é o irreal, nada mais lógico que seja na Bahia o local de incorporação e união entre Homens e “Santos” porque a Bahia é…
O berço das lendas
A terra dos mitos
Tenda dos Orixás
Santuário dos deuses negros
Bahia que entre o mar e a poesia tem um porto – Salvador.
Bahia onde os Contos são sonhos, os sonhos poesia, poesia negritude como as lendas do seu povo e as raízes do seu passado fincadas na África.
Bahia – cidade gorda, farta de dendê e cacau, que debruçada sobre o mar, finge não saber de nada, fica tomando sua fresca, vendo a lua se escamar na maré enchente, seus saveiros serenos, suas ladainhas seus segredos, santos e orixás.
Verdes vales – conventos e igrejas cor de osso – orikis alujas, ebos e festanças o ano todo.
Bahia onde tudo se mistura, se disfarça, sendo duas coisas ao mesmo tempo – caruru prato típico e Amalá Xangô – São Jorge, santo de fé, Oxossi, orixá dos bichos e caçador lá das bandas de Ijebú Ode.
Na Bahia o mar é azul
o céu é azul
o rio vermelho é azul
Só as areias são brancas onde são escritos, contados e sonhados com sabedoria os ABC da vida.
A história da cada um de nós, que teve na vida a glória de poder trilhar com garbo e razão os caminhos traçados por Olodumaré, o Criador. (…)”

(Fonte: Galeria do Samba)

A Tradição fez um desfile melhor que os seus dois carnavais anteriores, mas longe de poder disputar uma das primeiras classificações. A escola foi a primeira a desfilar na noite de 23 fevereiro de 2004, embaixo de uma chuva constante.

Eu desfilei pela escola e digo que valeu apenas por cantar o samba. A Harmonia amarrou demais o desfile – era uma ala semi-coreografada – e meus joelhos doíam bastante.

A escola de Campinho, bem diferente daquela de 1987, obteve o décimo segundo lugar no desfile daquele ano, com 372,9 pontos.

Mas eu me redimiria…

2009 marcava minha volta à Portela desdea tragédia de 2005. Fiquei três carnavais sem desfilar pela escola devido ao nascimento das minhas filhas. E…

… o esquenta da escola foi justamente com “Contos de Areia”. Pude cantar o samba pela minha escola do coração.

Para saber mais sobre a vida de Natal da Portela, o site PortelaWeb, do qual faço parte da equipe responsável, possui um ótimo material sobre a vida de nosso maior presidente.

Semana que vem, falarei de um samba de que gosto muito, e que será reeditado em 2010: “E por falar em Saudade”, Caprichosos de Pilares.

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