Meu avô viveu quarenta anos no Rio de Janeiro e nunca saiu do Recife. O velho sabia, lá do seu jeito, que o homem é sua aldeia. O resto é balela.
Poucos dias antes de morrer – e morreu em casa, perto de mim, graças aos deuses – o Luiz Grosso deu uma de garoto de calças curtas e pediu para esse seu neto: Eu quero ouvir o hino do Sport Clube do Recife.
Ouviu e deu um último sorriso. Morreu bem, pois preparou a grande despedida – e vive, num frevo que delirei, com Frei Caneca, Gregório Bezerra, Capiba e Maurício de Nassau.
O meu Recife é a Tijuca – e o rio Maracanã é o Capibaribe iluminado do meu vô.
Amo a minha aldeia – onde não nasci mas me reconheci. Aprendi a Tijuca, e ela é uma entidade, alma que vaga generosa, afável, aberta, solar, cafona, mesquinha, moralista, com cheiro de lírio e merda; bairro de putas generosas e cabaços mais inexpugnáveis que a linha Maginot.
A minha aldeia, camaradas, não é cenário de novela. Cheira e fede, a Tijuca – terra de futum, bafio, aroma, cecê, flor de laranjeira, pés mimosos de moças de família, coturnos de generais, sapatos de couro e sandálias esculhambadas que ornamentam dedos sujos de bebuns valentes em seus bares vagabundos – e moças sonhosas do amor que não virá mas deveria.
E como têm viúvas na Tijuca, já que homem que se preza não faz a desfeita de morrer depois da mulher.
É a Tijuca de Anescar, Noel Rosa de Oliveira, Marinho da Muda, Aldir Blanc, Geraldo Babão, Bala, Calça Larga, Almirante, Pindonga, Djalma Sabiá, Gargalhada, Zuzuca, Antônio Brasileiro, Salgueiros, Boréis, Formigas, Trapicheiros, normalistas, cadetes, beatas, trapaceiros, bandidos, homens de bem, vagabundos, batedores de carteiras e trabalhadores abençoados por São Francisco Xavier, São Sebastião dos Capuchinhos, Santo Afonso e, de quebra, pela Senhora de Nazaré – já que aqui temos o Círio – pois paraense tijucano é o que não falta.
Tijuca que anoitece nas praças e nos meus olhos, nas arruaças dos seus bêbados desamados e no canto de fé de suas igrejas reveladas e macumbas escondidas: E como tem macumbeiro e centro espírita de mesa na Tijuca. [Aproveitando a ocasião, fica a prece: Saravá, Cordeiro de Deus, tira o pecado do mundo, mas deixa um pouco de pecado na Tijuca, que faz bem e a gente precisa.]
Berço de índios, violenta e serena, camarada e arisca, caricata e sincera, essa minha aldeia é madeira de dar em doido e amenizar corações sofridos – e nos comove, como ao poeta, feito o diabo.
E tem barulho de tiro, trova, gozo e grito de gol na Tijuca. Além das sanfonas e guitarras lusas tocando o vira, é claro, pois há quem defenda que a Tijuca é só um delírio carioca – na verdade estamos numa aldeia no norte de Portugal, cheia de barbearias de responsabilidade e senhoras de bigodes e varizes que mais parecem o relevo da terrinha.
Ou a Tijuca é a África, ja que aqui a Casa Branca é mais importante que morada de presidente preto: É quilombo mesmo.
Não sei, me falta cacife pra afirmar, mas desconfio que o Eduardo Goldenberg saiba.
A função do filho é honrar o pai – como a função do pai é honrar o avô.
Eu pedirei um dia, perto hora de sumir na noite grande, que me cantem um samba qualquer sobre a aldeia que escolhi para amar a cidade, a mulher e os amigos. A Tijuca.
E já que cemitério aqui não há – que falha grave, Tijuca ! – que me torrem em um forno do Caju e joguem o que sobrar num canto da Praça Afonso Pena, ou num barco de madeira de quinta categoria, para que eu finalmente navegue meu rio Maracanã.
E como muito lirismo de cu é rola, eu quero é virar, depois de ir oló, um egum dos brabos, encosto pesado, para grudar nos ouvidos de uns tijucanos de merda, metidos a limpar cocô de galinha com colher de prata e cantar, feito assombração, um grito de guerra:
– Um, dois, três, quatro, cinco, mil, se não gosta da Tijuca vai pra putaqueospariu…
Ou atravesse o Alto da Boa Vista, que dá no mesmo.
Obs: O samba do dia não precisa de explicação – Império da Tijuca, 1986, em duas versões: No estúdio e, de forma comovente, na avenida [e que saudade da cadência, nos tempos em que bateria tocava samba]:

Abraços

13 Replies to “FALTA UM CEMITÉRIO NA TIJUCA”

  1. Viva nossa Tijuca, Simão. E temos que achar um lugar pra montar um cemitério. Aonde seria? Eu tenho uma opinião. Poderia ser no 6º batalhão, na Barão de Mesquita, perto da Pça Saenz Peña.

  2. Chorei!

    Sem palavras. A maior, a mais bonita e a mais perfeita descrição do bairro que eu amo, diria até que definitiva.

    Vou emoldurar, Simas, vou emoldurar.

  3. Tijucano de nascença e residência, de alma e tripas, me vi e vi a todos que quero bem em seu texto, Simas.
    Os que amam e já se foram, estão protegidos lá no Catumbi, que considero extensão emotiva da Tijuca.
    Grande abraço!

  4. Lindo! Fez lembrar a celebração das cinzas do Fernando Toledo, que foram postas num barquinho a singrar o rio Maracanã (ok, não foi muito longe), ao som da Saudades da Guanabara de Moacyr Luz, ali no cruzamento com a Garibaldi. E lá se vão quatro anos, acho…

  5. Não sou tijucano, mas, com essa manifestação de amor ufano, entendo porque existe o tijucano, substantivo e adjetivo. É o único bairro do Rio que ostenta o gentílico tão naturalmente. Existe o carioca e o tijucano. Pode até se falar em ipanemense, banguense, enfim, mas soa falso…Tijucano não é melhor nem pior. É como o Salgueiro, apenas um carioca diferente…

  6. Beatriz: ledo e grave engano, vamos aos fatos. A cerimônia deu-se de fato no local mencionado, mas ao som de VALSA DO MARACANÃ, de Aldir Blanc e Paulo Emílio. Só. No BUTECO há o relato do troço.

  7. Obrigada, ainda não conseguia encontrar palavras para expressar o amor por este bairro que me escolheu, não nascida aqui, mas todos os caminhos me trouxeram para aqui amar e morar!

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