A primeira pancadaria no estádio a gente nunca esquece. A frase me ocorreu ao assistir as cenas de pugilato entre os times do Fluminense e do Cerro Porteño no jogo da semana passada pela copa sulamericana de futebol. Afirmo que a garotada tricolor que foi ao estádio nunca mais esquecerá do furdunço no gramado.
Assisti ao jogo pela televisão e depois escutei as resenhas das mesas redondas. Ouvi dezenas de comentários sobre o absurdo que foi o arranca-rabo: Um péssimo exemplo, mancha o futebol, é uma mácula no jogo limpo e quejandos.
Não sei não, mas quando eu era moleque, e não havia essa frescura politicamente correta, a torcida adorava quando o pau quebrava entre os jogadores dos dois times. Era só começar o qüiproquó que as arquibancadas gritavam:
– Porrada! Porrada!
E digo mais, no tempo em que os jogadores saiam com mais freqüência na porrada dentro de campo eram raríssimas as brigas nas arquibancadas. Alguém há de concordar comigo: A violência nas arquibancadas cresceu na medida oposta ao afrescalhamento do jogo nas quatro linhas. Quem quiser que explique as razões e faça suas sociologias; eu só constato isso.
Jogo de futebol não é espetáculo de ópera ou coisa parecida. É drama, epopéia, catarse coletiva e o escambau. Arquibancada é o melhor divã do mundo. Eu, se fosse dar um conselho a algum psicanalista, diria com absoluta convicção:
– Queres conhecer o inconsciente do fulano de tal ? Observe o comportamento dele numa arquibancada. A arquibancada é o único espaço do mundo que não comporta mentiras – o sujeito mostra efetivamente o que é. E o psicanalista, que no campo de futebol provavelmente deve se sentir tão confortável quanto um judeu ortodoxo na Faixa de Gaza, há de zombar da irrefutável verdade.
Sou, por isso, a favor de uma campanha contra o fair play da dona FIFA. Acho que precisamos incentivar a volta do conflito generalizado em campo – melhor estratégia para acalmar as coisas na arquibancada. Um gol escandalosamente ilegal como o da França contra a Irlanda na última quarta feira é muito mais nocivo ao jogo e incitador de violência que o telecatch Montilla que Flu e Cerro protagonizaram no fim da peleja – que aos olhos da garotada, podem crer, pareceu mais um espetáculo de circo.
Fiz essas observações todas para, na verdade, confessar algo que só pretendia depois de morto, a uma médium de mesa branca durante sessão de psicografia: Nunca esqueci a sensação de euforia – e alegria genuína – que experimentei ao assistir a uma pancadaria entre os jogadores de Brasil e Uruguai em um jogo pela Taça do Atlântico, disputado no Maracanã em 1976.
Estava no maraca, eu e meus oito anos, com o avô e o pai. Ganhamos dos grigos de 2 X1 , mas não me lembro dos gols. Jamais me esqueci, porém, das cenas de pugilato envolvendo jogadores, comissões técnicas, imprensa, gândulas, funcionários da SUDERJ e o diabo.
No auge da confusão, o lateral uruguaio Ramirez – que já tinha caçado Zico em campo – saiu correndo feito touro bravo em direção a Rivelino, que em desabalada carreira deu um elástico sem a bola no gringo e acabou descendo de bunda a escadaria de acesso ao vestiário, num dos maiores tombos da história do futebol. Eu aplaudi com o mesmo vigor com que aplaudia as fanfarronices do palhaço Carequinha. Meu pai e meu avô imediatamente entraram no coro de porrada que a massa, afinadíssima, começou a entoar. E eu, delirante, também comecei a gritar porrada – feliz como pinto no lixo [apud Jamelão] .
A nossa dupla Jairo [goleiro] e Orlando Lelé [lateral direito] estava possuída – os dois devem ter batido mais em uruguaios do que todo o exército brasileiro na malfadada Guerra da Cisplatina. Jairo, aos meus olhos de menino, parecia o King Kong em fúria dando sopapos em aviões no alto do Empire State; virou meu herói imediato.
Um ano depois dessa quizumba, o Ramirez foi contratado pelo Flamengo. Muitíssimo bem recebido na Gávea, jogou ao lado do Zico, brincou com o Rivelino e deu a lição: A briga foi só dentro de campo – depois fica tudo em paz, como deve ser.
Ouso afirmar categoricamente o seguinte: Naquele noite, ao assistir a confusão generalizada que o escrete canarinho e a celeste olímpica protagonizaram no Mário Filho, me tornei uma criança absolutamente pacífica – naqueles gritos de porrada descarreguei oito anos de agressividade e meus avós e pais economizaram fortunas em psicólogos. Sou hoje um professor de história que não vê graça nenhuma em estudar ou falar de guerras e nunca saí no tapa com ninguém.
Descobri em um estádio de futebol, e nisso acredito até hoje, que só há dignidade e honra nas pancadarias travadas dentro das quatro linhas. Fora dali, vira coisa de otário ou bandido.
Assistam abaixo a um compacto do jogo, nas imagens inesquecíveis do Canal 100, e reparem o furdunço nos segundos finais. O mais bonito: O texto do Canal 100, ao contrário do discurso desses carolas de hoje que ficam achando que gramado é sacristia, diz apenas o seguinte: Brasil dois, Uruguai um; com mais uma briguinha, para manter a tradição!
Nem precisei assistir… eu também estava lá. Antes da porradaria, com o jogo quase terminando, o Ramirez deu uma bela pregada no Zico, o Riva discutiu com o cisplatino e deu-lhe um belo tapa na cara (estilo Obdúlio). Logo em seguida, o jogo acabou e o oriental partiu que nem possesso pra cima do Bigode, sendo recebido pela chanca do Lelé. Daí, generalizou e a galera na arquibanca foi à loucura. Boa lembrança e ótima tese!
Concordo 100%! Fiquei puto com a PM acabando com o melhor do jogo! Beijo.
Por isso eu digo: além do Anselmo o Almir Pernambuquinho merecia estátua e o escambau.
É isso aí, bela lembrança.
A FIFA devia copiar o hoquei no gelo. Onde o juíz só intervem na briga depois de dois minutos de tabefes e murros.
Valeu.
Helvécio.
Porra, Simas, concordo inteiramente com você. E a porrada tem que ser épica! Aquela do Ramirez correndo atrás do Rivelino e ele se estabacando fosso adentro foi demais! A gente deu e levou também! Depois, o Flamengo trouxe o cara…E a gente na expectativa do Fla-Flu, de mais porrada!
Agora, o que não aceito, o que acho babaquice, burrice são os caras do mesmo time de estapeando em campo, como o Obina e aquele outro maluco do Palmeiras, Maurício (acho). Vão ser burros na casa do caralho! Não podiam esperar mais meio minutinho, para se engalfinharem dentro do vestiário???
Te pego lá fora!
Sensacional o texto, parabéns!
Pelo fim do STJD também, a entidade mais bizarra do Brasil… Uma simples expulsão é motivo de julgamento, e o juiz, que é quem deveria ser tratado como bandido, é colocado como coitado, pode “errar” à vontade, “não tem os recursos da TV” e blá blá blá…
Depois da uma olhada no site (justiça desportiva), lá você vai encontrar links como “Julgamento do craque do seu time em tempo real!”, etc…
Fico puto quando me deparo com tanta viadagem no futebol.
Concordo com o post e com os comentários.
Aliás, Simas, eu não costumo pedir pra visitarem meu blog, mas gostaria que vc desse umoiada no meu último post porque tem um pouco a ver com este seu.
Abraço!
Valeu, GUIGO. Aquele abraço.
EDU, eis aí um personagem que merece um texto: Almir Pernambuquinho. Aguarde.
HELVECIO, meu velho, outro dia vi uma porrada no hoquei que foi um troço sério – e os juízes só observando.
CLAUDIO, concordo. Que quebrassem o vestiário todo…
NICOLA, o STJD é inominável.
CAMILO, vou lá. Abraço
Grande Simas,
concordo plenamente. Estava lá no Maraca nesse jogo e num outro, dez anos antes, meu batismo no coro come e ninguém vê: Flamengo x Bangu, decisão do Carioca de 1966. Nesse jogo saiu a maior porrada de todos os tempos, capitaneada pelo Almir Pernambuquinho, centroavante arretado e guerreiro indomável nos catiripapos e rasteiras.
O que rolou foi o seguinte: O Castor comprou o Valdomiro, goleiro do Flamengo, que tomou gol de todo tipo, até olímpico. O preço também é de conhecimento público: um fusca 66.
O melhor de tudo é que depois da pancadaria (que pode ser vista no flime Brasil Bom de Bola), do suborno e o escambau, o STJD, a FIFA e a Federação Carioca de Futebol ficaram quietinhas, não deram chilique, ataque de pelanca nem suspenderam ninguém. O Almir virou meu ídolo para sempre, fiz até um choro pra ele, bravo guerreiro que me vingou de uma derrota armada nos bastidores da máfia carioca.
Viva o Almir, viva o Anselmo e a porradaria salutar!!!!
Grande abraço, irmão,
Mauricio Carrilho
Olá Simas!
A mais inesquecível pancadaria que presenciei foi num clássico Palmeiras X São Paulo, pelo Campeontao Brasileiro no Morumbi em outubro de 94. Na época o Edmundo (au, au, au, Edmundo é animal!) partiu pra cima do Juninho Paulista. O Tonhão chegou e enquanto segurava o Edmundo, dava porrada em todo mundo! Não foi a primeira nem a última, até porque, na época, era praxe o pau comer solto…
À merda o politicamente correto, ao “afrescalhamento do jogo”!
Mais um excelente texto! Salve!
Beijo.
VANESSA, o Edmundo tinha talento pro riscado! Hoje é uma frescura só, infelizmente – e o Animal anda querendo arrumar briga num campeonato de showbol de veteranos.
Beijo
Grande MAURÍCIO CARRILHO, essa de 1966 deve ter sido a mãe de todas as porradas. Velho, o Pernambuquinho é mesmo um dos maiores personagens da história do futebol, fácil. Tua expressão é da maior felicidade, feito um choro arretado: porradaria salutar! É exatamente isso.
Grande abraço!
Simas, malditos Galvão Bueno e Luis Roberto, os apregoadores da frescura no futebol brasileiro.
Poucas coisas me irritam mais do que esse papo de que uma briga no campo se irradia pra arquibancada ou que um centro-avante que comemore um gol simulando tiros de uma me tralhadora incita a violência (ora, então por que esses mesmos narradores os chamam de “matadores”, “artilheiros”?).
Parece aquele papo paranóico de americano que acha que um jogo de videogame violento pode fazer com que uma pessoa cometa um genocídio. Pra mim é o mesmo que dizer que “eu” sou um retardado facilmente influenciável.
Isso sem falar naquela ladainha de “jogo das famílias”.
Nesse jogo do Flu x Cerro eu torci muito pros tricolores baixarem o cacete nos paraguaios, e adorei a declaração do Cuca na entrevista coletiva depois do jogo dizendo que é por causa da falta de revide que brasileiro fica com fama de bundão nos outros países sulamericanos.
E como já falaram do hockey aí, se essa teoria da irradiação da violência nos campos fosse verdadeira, as torcidas mais brigonas do mundo seriam exatamente as do hockey.
Como se vê, tudo uma grande bobagem.
Abraço!
No Anhangüera nunca teve pancadaria!
Luiz Antonio Simas,
Ganhou um leitor. Expressou exatamente meu pensamento a respeito de futebol e sua implicações sociológicas e tal. Escrevo modestas linhas sobre VASCO e futebol, minhas maiores paixões, nessa ordem lá no “Papo na Colina”. Vou linká-lo por lá. Tenho esperança que os amigos que lêem o que eu escrevo, passem a ler seus textos também. Idéias como essas, que você externou aí em cima, contém a alma do futebol que aprendi a admirar. Em 1976 também tinha 8 anos (sou de 1968) e sinto muita saudade daquele futebol HONESTO que presenciei na minha infância e juventude. Chega de falso moralismo. É um saco esse papo de “politicamente correto”. Esse papo rende muitas cervejas. Precisamos manter o debate aceso. Abraços.
Concordo plenamente. na época mais romântica do futebol, poucos eram os incidentes na arquibancada, e os jogadores se batiam muito mais.
“Lo que se pasa en la cahcha se queda en la cancha”, como dizem os urugaios e argentinos. A porrada é do jogo, pois jogo é guerra. Futebol é guerra.
É maravilhoso ler histórias antigas de Libertadores, onde os clubes usavam QUALQUER artifício para vencer, e os árbitros só marcavam falta se fosse muuuito forte. Era macheza, coragem, dignidade… era porrada!! E pensar que os clubes brasileiros simplesmente não aceitavam isso e geralmente fugiam como maricas dos embevecidos por sangue do outro lado do Prata. Por conta disso, até hoje brasileiro tem fama de covarde em gramados latinos.
Nas libertadores de antes era DOPING, PORRADA, GARRAFADA, QUEROSENE, PAULADA… valia tudo para vencer. Os jogadores iam PRESOS muitas vezes, geralmente na Argentina… teve um jogo de libertadores em 1971, onde quase VINTE jogadores foram presos, tamanha a porradaria.
este es el fútbol que gusta la gente… pelo menos os com dignidade na alma.
Hoje, em nome de nefastos conglomerados neoliberais e toda a frescura que instaurou-se não só no futebol, como no mundo todo, onde parece que ter culhões virou CRIME, resta ao homem trancar-se em consultórios imundos e empoeirados ante as vicissitudes dos tempos hodiernos que tão malignas sao ao coração dos justos… e olha que eu sou jovem.
Para completar, a frase indelével:
TREINO É JOGO, JOGO É GUERRA!!!!!!!!!!!
Discordo FRONTALMENTE e fico triste de saber que tem professor de história que pensa assim. Você deveria saber o que acontece quando se aceita a violência como prática comum.
Arquibancada é catarse, drama, epopéia, concordo….então se é jogador: corre mais, dá o sangue, acredita, tenha raça, caralho! E pra quem tá na arquibancada: xinga, dá soco no ar, pula, grita até perder a voz! Mas porrada nunca! Não dá pra concordar com isso.
Seria o equivalente ao seu aluno te dar uma porrada na cara por causa de uma nota ruim ou de uma discussão em classe. E aí, vai querer o fair play? Ou é só jogador que pode dar e levar porrada?
Violência no campo caiu e a na arquibancada aumentou. E daí? Cadê a relação causal? A violência nas arquibancadas aumentou depois que acabou a ditadura militar. E ai? Precisa voltar a ditadura pra reduzir a violência no estádio? Esse argumento é fraquíssimo…
Arquibancada gritando “porrada! porrada!” é reflexo do velho instinto animal, violento, que se quisermos evoluir como sociedade tem que ser re-direcionado pra coisas mais produtivas. É o mesmo instinto que faz criança jogar pedra em cachorro de rua e um monte de gente gostar das baixarias do Ratinho, ver acidentes de carro com vítima ou assitir à execuções e torturas em praça pública na idade média. Se a gente quiser evoluir, temos que mudar essas práticas violentas.
FAIR PLAY É BOM: Não é contra o espírito competitivo e emocionante do futebol. Muito ao contrário.
Marcelo, gostei da sua tentativa politicamente correta de ensinar o Pai Nosso ao vigário.
Vou tentar seguir o seu exemplo para evoluir e melhorar como professor de história.
Lamento te deixar triste, mas releva…eu não mereço crédito. Gostaria muito de assistir uma aula do senhor, pra ver se eu aprendo alguma coisa.
Abraço desse bosta que usa argumentos fracos e estimula a violência.