Recebi ontem uma mensagem por email que reproduzo:

Simas, você não vai escrever nada sobre a crise de Honduras?

Diante dessa verdadeira convocação, sinto-me impelido a meter meu pitaco na história hondurenha e retomar algumas reflexões que fiz sobre o conflito mais importante da história do país.

Dotado de preguiça monumental – faz calor pra burro aqui no Rio – não estou com paciência para confirmar o nome do autor da máxima o futebol não é uma questão de vida ou morte; é muito mais do que isso. Sei apenas que é a pura verdade.

Acho essa sentença uma das mais sérias proferidas pela humanidade, desde que Cristo, nas palavras de um aluno que tive, virou-se para Pedro, durante a Santa Ceia, e disse ao apóstolo:
Simão Pedro: Galo cantou às quatro da manhã / Céu azulou na linha do mar/ Vou me embora desse mundo de ilusão / Quem me vê sorrir / Não há de me ver chorar.
Me recordei da frase sobre o futebol por conta de um episódio que ocorreu nos idos de 1969 e é, curiosamente, pouco mencionado nos compêndios sobre a história da América. Aconteciam, então, os jogos eliminatórios para a Copa do Mundo de 1970.

Parágrafo brasileiro: O escrete canarinho atropelou, naquele certame, todos os adversários de forma impiedosa. Não vi aquele time jogar, mas imagino do que foi capaz um ataque com Jairzinho, Pelé, Tostão e Edu. O Manoelzinho Mota afirmou certa vez, diante do meu pasmo infantil sobre os feitos das feras do Saldanha, o seguinte:

– Moleque, só pra você ter uma ideia do que foi aquele ataque, te digo sem sacanagem: Jogavam até mais que a linha de frente do Vila de Cava com Capiroto, Curupira, Corno Manso e Abecedário.

E eu, fã absoluto do esquadrão do Vila, maior time da história da várzea de Nova Iguaçu, imaginava o que deve ter sido esse escrete de 70.
O Pelé jogava muito mais que o Curupira [que era fora de série e garanto que foi melhor, por exemplo, que o Ronaldo Fenômeno] e o Tostão deixava o Abecedário no chinelo. Jairzinho e Edu se equivaliam, na avaliação do Manoelzinho, a Capiroto e Corno Manso – dois verdadeiros estetas da redonda, que aliavam rapidez e habilidade.

Mas antes que eu me perca nesse arrazoado e troque Honduras por Nova Iguaçu – meu íntimo desejo – volto ao tema. Eliminatórias para o Mundial de 1970, América Central.

Honduras e El Salvador, países limítrofes que nunca se bicaram, foram disputar, num confronto direto, uma vaga para a copa do México.

No primeiro jogo, em Tegucigalpa, Honduras fez valer o fator campo e ganhou por um gol. No jogo da volta El Salvador devolveu o resultado com juros e sapecou um 3X0 contundente nos adversários. A negra foi realizada em campo neutro, na Cidade do México. Após um jogo impróprio para cardíacos, El Salvador venceu, na prorrogação, por 3X2.
Com acusações de ambos os lados, suspeitas sobre a arbitragem, denuncias de suborno, centenas de suicídios em praça pública e cenas de pugilato no campo e nas arquibancadas, aconteceu o inusitado: Honduras achou por bem expulsar milhares de imigrantes salvadorenhos de seu território.

El Salvador, estimulado pela classificação para o mundial, respondeu na bucha, com ares de potência – o exército invadiu o território inimigo. Começava, no dia 14 de junho de 1969, a Guerra do Futebol, o conflito bélico mais sério da história contemporânea; uma senhora pancadaria, de fazer as guerras napoleônicas terem a dramaticidade de um piqueninque na Quinta da Boa Vista.

O confronto durou seis dias, vitimou cerca de 5.000 pessoas, fez o trio de arbitragem do jogo final pedir proteção a organismos internacionais, mobilizou a ONU, a OEA e a Cruz Vermelha, gerou milhares de refugiados e só terminou com um cessar-fogo negociado e a criação de uma zona desmilitarizada na fronteira – onde jogos de futebol foram terminantemente proibidos. Não podia ter nem linha de passe, paredão ou altinho, para não dar merda.
O governo salvadorenho comparou o conflito, por sua dimensão histórica e importância geopolítica, à Guerra dos Cem Anos, entre Inglaterra e França, que mudou as fronteiras da Europa e a história do Ocidente. A pancadaria ficou conhecida, inclusive, como a Guerra das Cem Horas.
Depois dessa zorra toda, El Salvador foi disputar o torneio no México. A torcida, estimulada pela épica classificação, sonhava, pelo menos, com um terceiro lugar. Os jogadores, saudados como heróis de guerra, receberam condecorações, desfilaram em carro aberto e o escambau.

Enquanto isso, em Honduras, rituais pré-colombianos, que incluiam preces diárias ao sol e outras mumunhas, clamavam pela desgraça do selecionado rival na copa. A mandinga funcionou.
A campanha da seleção salvadorenha no certame foi a seguinte : perdeu da Bélgica (3X0) , do México (4X0) e da URSS (2X0). Com o pior desempenho do mundial, sem marcar um mísero gol, o onze centro-americano não passou da primeira fase e voltou mais cedo pra casa. O time de heróis foi devidamente recebido com pedras, moedas e hortifrutigranjeiros no aeroporto.

Os hondurenhos, tremendamente felizes com o papelão dos rivais, fizeram carnaval fora de época e o diabo. A foto que abre esse texto, inclusive, é um monumento hondurenho ao soldado caído na pancadaria.

Fico por aqui. Era isso que eu tinha a dizer, para atender ao pedido que recebi, sobre a crise de Honduras.
Abraços.

7 Replies to “A GUERRA DAS CEM HORAS”

  1. O autor da Frase é Bill Shankly, técnico do Liverpool nas décadas de 60 e 70.

    Ess frase estampa o cabeçalho do blog Forza Palestra, do amigo Brneschi. Por lá, ele reproduziu seu post “PELO FIM DO FAIR PLAY: QUERO PORRADA NOS GRAMADOS”
    (http://forzapalestra.blogspot.com/2009/11/belluzzo-o-futebol-e-os-recalcados.html.

    Falei brevemente com você no Ó sabadão. Estaremos no RJ esse fim de semana e empurraremos(tentaremos) o Palmeiras para a Libertadores.

    Abs,
    Teo

  2. Finalmente um motivo decente para um país declarar guerra a outro!
    Aproveitando a idéia, a Irlanda poderia bombardear a França por causa daquele gol, ajeitado com a mão, da autoria do Thierry Henry, que o árbitro, convenientemente, não viu…

  3. Hahaha…tenho que admitir, sua narrativa me fez chorar de rir…
    A tal frase que abre o texto é de Bill Shankly, escocês, técnico do Liverpool, nas décadas de 60 e 70.

    Abraço,

  4. Boa, CLAUDIO. Veremos o que os cabras vão aprontar em 2010.

    BRUNO, valeu o esclarecimento. Abraço!

    TEO, me lembro perfeitamente de você no Ó. Vou lá visitar o Forza Palestra. E valeu o esclarecimento sobre o autor da frase.
    Só um detalhe: Tomara que o teu Palmeiras chegue lá, tenho grandes amigos palestrinos, mas perdendo do meu Botafogo. Abração, velho.

    Valeu, VANESSA! Beijo

    FELIPE, sua ideia sobre a reação da Irlanda é ótima. Abraço

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