O título dessa postagem é uma provocação. Explico. O jornalista Joaquim Ferreira dos Santos escreveu um texto, em O Globo de hoje, descendo a borduna na decisão da prefeitura do Rio de Janeiro de voltar a permitir a venda do mate de latão nas praias cariocas.
O argumento do texto é primário: A liberação do mate em latão é a senha para a capitulação do poder público diante do vale tudo e do salve-se quem puder em que se transformou a cidade do Rio de Janeiro.
O jornalista, em certo momento do arrazoado, exercita uma irônia rasteira e lança duas pérolas dignas de sambadinhas do Rubinho Barrichello no pódium. A primeira: Abaixo a depressão dos falsos civilizados e consagre-se no poder o viés africano que nos vai na veia. A segunda: A malandragem, foi dito na reunião da secretaria, é cultura.
A primeira sentença é um primor. A bandalheira é ironizada como a supremacia criadora do viés africano que nos vai na veia e o sabichão alfineta os que ressaltam a importância das áfricas que forjaram boa parte da cidade. Joaquim exerce aqui duas lições que andam fazendo a cabeça de muitos jornalistas – sabem um pouco de tudo e não entendem profundamente de nada e são incapazes de pensar o presente com uma perspectiva mais reflexiva sobre o passado que o gerou.
Não custa repetir: A exclusão social no Brasil foi um projeto de Estado. A República fechou as portas, após a abolição da escravatura no final do Império, a qualquer projeto de integração dos descendentes de escravos no mercado formal de trabalho e no exercício pleno da cidadania. A cultura da informalidade, portanto, é decorrente em larga medida da falta de alternativa. Se é boa ou ruim é outro papo. O que interessa é que ela existe e não é fruto de viés que vai na veia – é estratégia de sobrevivência, fonte de crimes [inúmeros] e salvações [muitas]. O jornalista Joaquim acha bonito e muito inteligente fazer ironia com um povo que foi escorraçado nos navios negreiros [a frase é dele, tentando fazer gracinha reacionária com os quatro séculos de escravidão no Brasil].
Aproveito o mote do parágrafo acima para dizer com toda a convicção: Malandragem é cultura.
Ou o jornalista ainda confunde cultura com evento? É mesmo essa a visão de cultura de um homem que escreve no jornal de maior circulação da cidade? Cultura não é coisa naturalmente boa ou ruim, caceta. Cultura é a maneira como um grupo cria ou reelabora formas de [re]invenção da vida e estabelece significados sobre a realidade que o cerca. As maneiras de falar, vestir, comer, rezar, punir, matar, nascer, enterrar os mortos, chorar, festejar, envelhecer, dançar, não dançar, fazer música, silenciar, gritar… tudo isso é componente da cultura de um grupo.
Há no Rio de Janeiro uma cultura da informalidade [podem chamar de malandragem, jeitinho brasileiro…] absolutamente arraigada, para o bem e para o mal, ao cotidiano do carioca. Essa cultura se estabeleceu entre as frestas deixadas por um poder público que historicamente se preocupou mais em reprimir do que em incluir. E que pode ser modificada, é claro, já que as elaborações de significados são dinâmicas, jamais estáticas.
Há os que acham que, por conta dessa reflexão, defendo a bandalheira, o cada um por si, a barbárie. Jamais. Sou plenamente favorável a um poder público atuante e garantidor de um espaço urbano que possa ser usufruido de forma saudável pelo cidadão. Faço, apenas, algumas considerações:
1- Há que se fundamentar um sentido de civilidade urbana que não se contente com a ideia fácil de que a repressão é o único caminho que leva à ordem.
2- A tensão criadora entre o que é legal e o ilegal exige do poder público mais do que o controle de um forte aparato de segurança [que em geral só funciona contra o andar de baixo] – é necessário o bom senso de se separar o joio do trigo e perceber que o mercador de flores da esquina, o livreiro de rua e o bebedor de ceveja no Maracanã são muito diferentes do flanelinha que extorque o motorista ou do garotão de condomínio que sai de noite para espancar putas e pobres.
3- Não há ordem possível por aqui sem o vigoroso engajamento em projetos de inclusão social. Exemplifico. Reprimir a máfia das vans é rigorosamente necessário, mas pensar em formas de transporte dignas e legais para a massa urbana é de extrema urgência e deve ser o primeiro passo nesse processo. Arrumem primeiro uma forma do trabalhador conseguir se deslocar dignamente e depois coloquem no xilindró essa malta que explora o transporte ilegal. Ou façam as duas coisas ao mesmo tempo [a melhor alternativa, é claro]. Ou que tal adotar a solução mais fácil: Vamos prender todo mundo e acabar hoje com as vans. A empregada doméstica carioca vai acabar dando um jeitinho [olha ele aí!] de chegar ao trabalho na casa da madame. Basta sair de casa duas horas antes, lá pelas três da manhã, e descer a Avenida Brasil correndo. Podemos até dizer que é um programa de saúde pública, já que correr faz bem pro coração. Colocar no mesmo liquidificador o dono da van, o motorista da van, o trocador da van e o passageiro da van é sacanagem das grossas. É coisa de quem cresceu soltando pipa no ventilador e tem a sorte de trabalhar em casa.
4- O samba urbano surgiu no Rio de Janeiro e foi tremendamente perseguido, como até o Cristo Redentor sabe. Desde a Era Vargas o processo de legitimação do samba se impôs e quebrou as bordunas e cacetes da polícia. Candeia, entretanto, sabia que não era suficiente legitimar o samba como manifestação maior da cultura carioca. O dia de graça só virá mesmo quando o sambista conseguir cantar o samba na universidade, na condição de aluno ou professor.
5- O texto do jornalista Joaquim presta um péssimo serviço ao debate fecundo que se trava hoje sobre o Rio de Janeiro que queremos. Não tenho nenhuma procuração para defender a prefeitura, mas a disposição de recuar, errar e acertar nesse processo é importante. É desonestidade intelectual colocar no mesmo vatapá flanelinhas, assassinos de plantão, motoristas que falam no celular, camelôs, grafiteiros, garotos de programa, policiais corruptos, jogadores de frescobol, torcedores do Flamengo, sofredores do Botafogo, madames, poodles na coleira, big brother Brasil, apontadores do bicho, vendedores de camarão frito e o escambau. Denota, também, uma visão simplista e perigosamente moralista da cidade e de sua gente.
6- A Revolta da Chibata faz cem anos em 2010. Os marujos liderados por João Candido se rebelaram contra a legalidade. O que era legal na época? Punir a marujada com um código disciplinar dos tempos da escravatura, com destaque para as chibatas com navalhas nas pontas que lanhavam os corpos dos marinheiros sem voz e sem patente. Na visão tosca dos legalistas de plantão, os marujos não passavam de bandidos que se levantaram contra a lei estabelecida. Pau neles! Nunca a distinção entre o que é legal e o que é justo foi tão aviltante na nossa história. Se vivo fosse naquele ano em que o Botafogo papou o campeonato carioca, e na toada do texto de hoje, o Seu Joaquim provavelmente escreveria um indignado artigo contra os baderneiros que fizeram o charivari na Baía de Guanabara e demostraria toda a indignação com o governo que concordou com o fim da chibata, esse fundamental objeto de controle público. A chibata tá na lei; viva a chibata!
Termino reafirmando o que desde o início dessa prefeitura defendo com veêmencia. O tal choque de ordem [o nome é péssimo, já que remete a batalhão de choque, ordem do cheque, choque elétrico e os cacetes…] deve ser fundamentado no bom senso, que dispensa os arroubos e convida ao diálogo entre o poder público, a cidade, seus habitantes, seu passado e suas projeções de futuro. E que encare a informalidade, sim senhor, como um traço constituidor [dentre outros] da cultura do Rio de Janeiro, nosso inferno cotidiano e nossa possibilidade de redenção. Aqui prevaleceu a sabedoria da escassez – nada mais do que a forma de inventar, com um quase nada, a vida que foi negada. Deus e o diabo na Guanabara.
Essa nossa cidade, feito árvore frondosa, deu e dá muitos frutos bons e muita coisa podre. Reprimir, dialogar, incluir, escutar, ponderar, ordenar, ceder, marcar posição, abrir mão… tudo isso faz parte de um processo que não é mole. Vale aqui o velho alerta da piada: O risco de se colocar tudo no mesmo saco, seu Joaquim, é jogar fora, depois do banho necessário, a água suja da banheira com o bebê dentro.
Abraços.

26 Replies to “MALANDRAGEM É CULTURA OU A LEGALIDADE SEGUNDO O SEU JOAQUIM”

  1. Caro Simas PERFEITA sua colocação! Maravilhosa exposição histórica e argumentos, Muito Obrigada por nos brindar com esse nível elevado e coerência (Coisa que não se vê muito por aí!). Queria saber quando é que você fará parte dos conselheiros do município, do estado e do país. Com tanta clareza, imparcialidade e conhecimento só te recrutando pra missões impossíveis! Bjs!

  2. Muito bem, professor.

    Cultura não é uma coisa boa, nem uma coisa ruim.

    O que é legal quase nunca é legítimo. Pelo contrário, a legalidade se dá em uma luta política, onde, na maior parte das vezes, prevalece os valores dos representativamente mais fortes.

  3. Simas,

    Parabéns pelo texto, de uma clareza fenomenal. Acompanho seu blog faz tempo, mas só fiz comentários umas duas vezes. Essa deve ser a terceira.

    Bom, fiquei puto com o que esse cidadão escreveu hoje. Dizer que permitir (ou melhor, não proibir)o mate em latão é igual a permitir qualquer tipo de transgressão a qualquer lei é de uma burrice descomunal. Na cabeça dessa criatura, abraçar um desconhecido na hora de um gol deve dar carta branca para que ele te coma. É inacreditável que isso seja publicado num jornal (sic) de prestígio (sic sic sic).

    Infelizmente, a mentalidade expressa por esse jornalista é bem difundida no Brasil. Muita gente acha que, se houvesse “vontade política”, o Brasil, de um dia pro outro, se transformaria na Suécia. O problema é que não queremos ser suecos. Temos, sim, muitos problemas, e muitas vezes exemplos estrangeiros podem servir de referência, mas temos que encontrar nossas próprias soluções. A informalidade é uma solução – não é a melhor, mas funciona até certo ponto. A ilegalidade deve ser combatida, mas de forma coerente com nossa realidade. Apóio muitas das medidas desse “choque de ordem”, mas a repressão não pode vir sozinha, sem que alternativas sejam apresentadas.

    Seu texto é brilhante ao destacar algo que parece óbvio, mas é muitas vezes esquecido: essa cidade pode ser uma zona, mas é a nossa zona; tornou-se uma zona por milhares de fatores, durante centenas de anos. Tudo que temos de bom, e tudo que temos de ruim, foi construído por nossos antepassados e por nós mesmos. Tudo isso é a nossa cultura, do samba de Noel à “carona” no ônibus, do carnaval de rua aos 50 contos na mão do PM pra ele te liberar do IPVA atrasado. Acho que cabe a nós tentar entender melhor nossa realidade, identificar o que deve ser combatido e o que deve ser celebrado, e assim seguir construindo, aos poucos, nossa identidade.

    Um abraço,

    Felipe Loureiro

  4. DENISE, são apenas argumentos que, espero, colaborem com um debate amoroso sobre a cidade. A ironia reacionária do Joaquim Ferreira é que é insuportável e eu estou cada vez mais próximo da ideia de que debates podem ser gentis e bem educados. Não sou imparcial [falo de um lugar determinado] e nem ouso escrever a verdade estabelecida [não acredito nisso e me acho uma pessoa capaz de rever posições – sou mesmo capaz de incoerências inacreditáveis]. Quanto a fazer parte de conselho público, vou levar na brincadeira sua colocação.
    Valeu,
    Beijo

  5. Bravo, Simão! Creio que não li nada melhor e mais elucidativo do que seu texto sobre o tal choque de ordem e o preconceito contra o povo — preconceito que as elites estão transmutando em uma raiva cada vez mais fecunda. Sei não, mas acho que está faltando pouco para essa gente de imprensa começar a defender, abertamente, um golpe de Estado. Não duvido que assim se comportorão quando uma ex-terrorista chegar à Presidência. A ver…

  6. CLAUDIO, concordo com você.

    FELIPE, é isso aí. Pela lógica do jornalista o Noel se formaria em medicina e não ficaria perambulando pelas ruas com os pretos do Estácio e da Mangueira.

    Abraços.

  7. Diante de tamanha intolerância que é um fruto do autoritarismo e da idolatria de alguns como o jornalista citado,tenho medo do futuro de meus netos. Já passei por tanta coisa na minha mocidade, rogo aos homens que ainda curtem a liberdade que lutem por ela.
    Você é 1.000

  8. Meu mano Luiz Antonio Simas (encho a boca para escrever seu nome, Mestre do qual me orgulho!): quem me dera se eu tivesse sua clareza, sua tranqüilidade e sua serenidade para dizer o que você diz, e que é exatamente o que penso. Legalistas, pregadores da ordem a qualquer custo, brandindo regras, regulamentos e mais-que-tais, não resistem à leitura dessa sua aula. Como pode, querido, nenhum jornal brasileiro pagar uma fortuna para tê-lo?! Um beijo.

  9. Golaço, Simas!
    Cada texto seu que a gente lê, fica mais difícil aguentar a escrotidão da grande imprensa.
    Foda-se O Globo! Agora eu só leio Histórias Brasileiras…
    Saúde e um abração!
    Mauricio Carrilho

  10. Inacreditável que alguém pague 1 real que seja pra esse sujeito escrever.
    Quase caí da cadeira quando ele deu a entender que quem joga frescobol na praia é bandido só porque essa prática era (ou é, não sei) proibida por alguma lei. Ou seja, descumpriu uma lei, logo é bandido. Lei essa, no caso, que nem penal é.
    Pra gente como ele só existem 2 categorias de pessoas: ou você é “homem de bem” ou é “bandido”.
    Eles só conseguem enxergar a superfície. Talvez por isso sejam tão preconceituosos.
    Triste.

  11. salve, simas,

    mais um golaço contra eses mauricinhos felas-da-gaita que abundam na grande imprensa. nem assino, nem leio essas porcarias pra não vomitar.

    daqui de fortaleza, acompanho, puto da vida, é claro, essa desgraça que é o “choque de ordem” aplaudido no circuito ipanema-leblon-barra.

    abçs e, por gentileza, permaneça atento.
    parabéns, professor.

  12. BRUNO, NADJA E EDU, quero ver um dia essa trinca reunida para falar umas bobagens, cantar uns pontos e tomar umas canas. Beijos.

    MAURÍCIO, meu mestre, a Folha Seca te espera prumas geladas, cacete. Abração!

    PIAN, meu velho, a tarefa é complicada pra diabo.Que o bom senso prevaleça.Abraço.

    DANIEL, concordo rigorosamente com a tua colocação. O oito ou oitenta desse cabra na coluna de hoje é inacreditável. Triste mesmo.O Joaquim hoje me lembrou O Alienista, do Machado de Assis. Quando descobrir que é o único que cumpre a lei integralmente e que o resto da população está na cadeia, ele se prende e solta a rapaziada. Abraço.

    MOUTINHO, meu camarada, já disse que prefiro uma crise belga. Abração e saudações imperianas.

    CARLOS, o problema agora é maior. A coluna do Joaquim hoje, conforme ressaltou o Daniel Banho, praticamente proclama que todo mundo é bandido na cidade. Um troço impressionante. Abraço.

  13. Simão, esse Joaquim se acha intelectual pra cacete. Anda sempre de nariz empinado e faz carinha de nojo para o que está fora de seu círculo social. Ou seja, é um merda do caralho. Você, como sempre, matou a pau explicando pra esse infeliz o que realmente é cultura. Pra ele cultura são os Fashion week da vida. Pobre coitado. Beijo.

  14. Não li o texto do Joaquim, mas sou obrigada a achar que ele tem um mérito, ao menos, que foi provocar esse teu, tão preciso e precioso. Parabéns, Simas, outra pérola.

  15. Caramba, quanto argumento oportuno junto! Conheci o blog recentemente e virei ã de carteirinha. Os textos mais engraçados são de chorar de rir, mas esse de hoje está sensacional!
    Salve a cultura popular brasileira, que tem no Rio de Janeiro sua maior inspiração e símbolo!

    Abço e parabéns!

  16. Não se impressionem com nada vindo desse tal Joaquim. Foi ele mesmo que escreveu certa feita uma coluna ironizando homossexuais. De tarde, a redação do Globo parou com um e-mail de um camarada, colega dele de faculdade, que dava nome, endereço, telefone, CPF e o escambau pra confirmarem a veracidade. O mesmo sujeito conta que na faculdade Joaquim era chamado de “Lilica”, e que chegou a patolar um colega no banheiro, na marra…Ou seja, o que ele escreve nem sempre é como se comporta…

  17. Simas,

    Levei um susto gostoso. É q. tbém sou Simas — três casamentos mas mantenho o nome do pai. E depois, vi, no canto direito homenagem ao Império. Daí lembrei de uma música do Mano Décio na hora — Ser Império como eu sou/No sorriso e na dor…..
    Nasci em Floripa. Dizem que Simas é uma família só. Uns foram para o sul e outros para o Nordeste.
    Sou a figura torta da família e escrevi só para dizer que descobrir seu blog foi mais um “sinal” de 2010 será, enfim, um ano bom para essa filha de Ogum com Iansã.

    Grande abraço,

    Sílvia

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