É impressionante como algumas marchinhas carnavalescas se incorporam ao imaginário do sujeito feito o Padre Nosso para cristãos. Invenção carioquíssima, a marchinha é a crônica cantada, serelepe, ágil, sacana, vez por outra lírica, da nossa gente. Sou fã absoluto do gênero.

Sei de gente que se comove na época do Natal com o os Meninos Cantores de Petrópolis cantando Noite Feliz. Outros, mais caipiras, sentem o peito doer nas festas de São João, ao som de O balão vai subindo. Conheço até um sujeito meio fresco que chora na Páscoa quando escuta o coelhinho se eu fosse como tu. Eu, triste carnavalesco que sou, costumo chegar às lágrimas com a imortal Marcha da Cueca, uma espécie de Marselhesa dos países baixos, composta por Carlos Meneses, Livardo Alves e Sardinho [obra dessa dimensão não poderia mesmo ser fruto de uma única pessoa] :

Eu mato, eu mato
Quem roubou minha cueca
Pra fazer pano de prato.
Minha cueca
Tava lavada
Foi um presente
Que ganhei da namorada

A Marcha da Cueca traz tremendas recordações e a lembrança, especialíssima, de um episódio que moldou, em certo sentido, meu caráter. Até escrevi certa feita sobre o fato em algum canto do antigo blog. Rememoro o evento.

Tinha eu catorze anos de idade quando ganhei uma cueca espetacular – cor de laranja, com uma máquina fotográfica no meio e a frase definitiva : Olha o passarinho. Foi presente da minha mãe. Aliás, minto, não foi minha mãe. Ganhei a cueca da minha tia Lita.
Passou a ser minha cueca predileta, que usava com constância pouco recomendável. Mais do que predileta, a cueca me dava era uma sorte violenta. Não cheguei ao ponto de D. João VI, que usou uma única peça de baixo por oito anos, mas é meu dever confessar que as outras cuecas perderam a importância diante daquela.
Eis que um dia, sintam meu drama, fui jogar futebol com a garotada na Casa do Minho, clube português situado em Laranjeiras. É evidente que estava usando a cueca, garantia absoluta de um desempenho brilhante nas quatro linhas.
Sempre fui, e a pausa é necessária, homem-gol. Dotado de insuspeita habilidade com a criança nos pés, era um dos primeiros escolhidos no par ou ímpar. Balançar as redes adversárias, para mim, era mato.
Pois bem , voltemos ao cenário do drama. Começa o jogo. O beque adversário faz uma marcação firme para conter minhas arrancadas mortíferas. Subitamente sou assaltado por uma necessidade vigorosa de ir ao banheiro. Estou entre amigos, peço rápida substituição e dirijo-me célere aos vestiários.
Chegando lá, em situação emergencial, busco a privada com o fervor de um muçulmano peregrinando à Meca. Já no trono, sinto o alívio vital da evacuação, caudalosa como um Amazonas barroso.
Terminada a tarefa, busco agir com rapidez para voltar ao cenário do confronto. Há , porém, um grave problema. Onde está o papel higiênico? Não está. Não há. Toalha de rosto? Não há. Não existe rigorosamente nada que possibilite a higiene pós-apoteose fecal.
Volto ao jogo naquelas condições? Nem pensar.
Me ocorreu então a única e dolorosa saída – sacrificar a cueca.
Dotado de tristeza profunda, vivendo uma espécie de escolha de Sofia, sacrifiquei a bichinha em nome da manutenção da dignidade pessoal do artilheiro. Me limpei com minha peça de estimação, maculando para todo sempre o olha o passarinho.
Após o ato cometi o ilícito: Zuni a cueca pela janela do banheiro, que dava para o pátio do prédio vizinho. Lavei as mãos – sempre fui educadíssimo – e voltei ao jogo. Tive uma atuação discreta, apagada mesmo, naquele dia.
Acho que é por isso que a Marcha da Cueca me deixa, com a licença do poeta, comovido feito o diabo. A cueca da marchinha, que virou pano de prato, passou a ser a dolorosa lembrança da outra, que virou papel higiênico. Saudade, teu nome é Carnaval !

Evoé

8 Replies to “O CARNAVAL E A MARCHA DA CUECA”

  1. Simas, querido! Não pude ir ao lançamento do seu livro, mas quero comprá-lo no sábado, na concentração do bloco. E tê-lo autografado, evidentemente. É possível?

    Imagino tal alegria que o Edu descreve no Buteco! Infelizmente não pude ir. Esstava na produção de uma reportagem especial com Martinho da Vila.

    Reunimos Martinho, Zuzuca do Salgueiro, Zé Catimba, Aloísio Machado, Paulinho Mocidade, Sérgio Cabral, João Máximo, Haroldo Costa, Davi Correia, familiares e amigos do Martinho no antigo Bar dos Cem Réis, onde Noel bebia. Hoje é o Capelinha. Foi lindo! Puxamos esse pessoal pra rua, misturando-se com o povo da escola.

    Foi muito legal!!!!

    Queria ter, como Santo Antônio de Pádua, o dom da ubiquidade nesta quarta que passou.

    Abração!

  2. Ah…
    Preciso comentar!!
    Dei muitas rizadas quando li da primeira vez. E não é que o riso voltou ao meu rosto ao reler tal fato!! Rs…
    Preciso ainda declarar como foi bom participar do lançamento do seu mais novo livro meu querido [ex]professor e da felicidade que foi reencontrar uma galerinha boa dos tempos da FEUC!
    Tenho devorado conteúdo fantástico que você selecionou com o Mussa e recomendado ao mundo, rs!!

    Ah…vou te mandar minha modesta visão sobre o nosso Castelo por e-mail, um dia de rara flexibilidade em seu tempo, leia por favor!!

    Abraços, Amanda =)

  3. Essa marchinha faz parte da minha infância carnavalesca. Mas tem uma que gosto mais.

    Quando toca ‘Coração de Jacaré’ meu olhos enchem d’água. Pena que não tocam mais. Considero a melhor expresssão da alegria carnavalesca.

    “Cortaram o coração da minha sogra
    Botaram um coração do jacaré
    Sabe o que aconteceu?
    A velha se mandou e o jacaré morreu”

    Abraços
    Helvécio

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