Temos, na tradição cinematográfica mundial, alguns clássicos de natureza intimista, em que a câmera estabelece um diálogo instigante com o espectador e parece propor um jogo de gato em rato onde a arte é  a instância do confronto entre o que somos e o que pretendiamos ser. A arte, nesse momento, desnuda o homem, retira suas máscaras e corta a carne como navalha afiada de um amanhã que já não há e de um ontem que se perdeu em um lugar mais distante que Presidente Prudente.

Esse intimismo, marca do cinema bergmaniano, de toda a tradição do dogma escandinavo e da escola existencialista francesa – que alguns preferem chamar de cinema-angústia e eu prefiro de  cinema-suicídio – encontra seu maior momento no Brasil no filme O bem dotado, o homem de Itu, clássico da pornochanchada canarinho, dirigido com mão segura e medida certa por José Miziara.
O enredo é simples, mas de alcance universal : Lírio, um caipira ingênuo, sai de Itu para viver o choque cultural de 220 volts na cidade grande. Em virtude de seu pênis de proporções garrinchais, se transforma em homem-objeto para mulheres da alta sociedade e se mete em toda sorte de confusões e sacanagens, até a libertação definitiva através do amor verdadeiro, daqueles que Walt Disney inventou para vender figurinhas da Branca de Neve durante a Grande Depressão dos anos 30.
A atuação de Nuno Leal Maia como Lírio é apenas correta. Nuno, ator da velha tradição dos machões como Sir Laurence Olivier, Al Pacino, Capitão Asa, Marcelo Mastroiani e Edir Macedo, tem alguns bons momentos, revelando aos poucos a tensão que Lírio vive entre a pureza do homem do campo e as delícias da grande cidade. O personagem, no fundo, é uma mistura de Mazzaropi e Mané Garrincha – uma espécie de árcade tardio – mas Nuno poderia encontrar por vezes um tom um pouco mais sutil entre o Jeca Tatu e o gênio das pernas tortas.
O elenco feminino, esse sim,  é de grande categoria. Consuelo Leandro e Maria Luíza Castelli se saem bem como grã-finas matando cachorro a grito. Destaco, porém,  a sensível atuação de Helena Ramos como Julinha e o agressivo contraponto proposto pelo desempenho da diva Aldine Muller como Lurdinha. Espetácular ! é a definição correta para  a dupla dinâmica Helena e Aldine, uma espécie de Pelé e Coutinho da cinematografia nacional. 
A Volga, de Ana Maria Nascimento e Silva, nos remete aos tempos de Sodoma e Gomorra e de Cleópatra, a rainha do Egito,  numa evidente e erudita remissão às sagradas escrituras e aos balacobacos da filha de Ptolomeu XII e amante de Julio Cesar e Marco Antônio. Magnífica também é a atuação de Esmeralda Barros como Pedra, dialogando com a câmera em insinuante desempenho e revelando um talento que depois se consolidou no filme Mulheres do Cais, outro clássico da nossa produção.
Em certa ocasião, e observem como me preparei para esse texto,  um crítico alentado afirmou sobre um clássico de Godart o seguinte: “Toda arte, como metáfora da vida, é o tabuleiro de xadrez onde Eros e Tânatos se enfrentam na batalha interminável entre o ser e o nada e onde o horizonte que se descortina ao homem é o inevitável encontro com seu antípoda que é ele mesmo, inexoravelmente fadado ao desmantelo da fragmentada fagulha que é nossa existência”.
Fiquei impressionadíssimo com essa definição, já que na hora não entendi necas de pitibiribas da sentença genial. Só depois de assistir ao Bem dotado, o homem de Itu, um filme pré-Trovão Azul, é que captei o que quis dizer o eminente homem de cinema e renomado intelectual: Se um dia o báculo episcopal vai virar bandeira a meio pau, que me importa se a mula é manca; eu quero é rosetar!
Abraços.
ps: Como a configuração do blog está meio doida, os links com textos antigos e os liames  dos amigos passaram para o final da página. Estão todos lá, intactos.

13 Replies to “O BEM DOTADO, O HOMEM DE ITU”

  1. Simas, tens razão. O bem dotado é Bergman puro! Mas sou mais o Miziara. Imagina o auê mundial que ele faria se dirigisse Gritos e Sussurros! Urso de Prata ou Palma de Ouro no mínimo!

  2. Excelente, Simas. Como sempre.
    Espero que um dia você assista (se já não o fez) e critique aqui o espetacular “Matou a família e foi ao cinema”, protagonizado por Alexandre Frota e com Claudia Raia em EXCELENTE forma, se é que me entendes.
    Acima deste, só enxergo um título na pirâmide da filmografia nacional: “Cinderela Baiana”, de Carla Perez, com participação de Alexandre Pires e Lázaro Ramos ainda garoto. Um luxo. Procure no youtube que tem alguns trechos.
    Fica a dica.
    Abraços.

  3. Faço coro com Daniel, para que entre suas próximas resenhas cinematográficas esteja incluído o sensacional “Matou a família e foi ao cinema”. O filme tem cenas antológicas e atuações pugentes.
    O enredo é de uma complexidade ímpar, tanto que, até hoje, não entendi nada da estória, mesmo já tendo assistido o filme por duas vezes.

  4. Prezado Luiz Antônio…

    Continuas impagável! Não sabia desse blog. Visitarei com mais frequência.

    E me diga, afinal, aonde estão aquels rodas de samba especialíssimas que você descobre e frequênta?

    Grande abraço!

  5. Puxa, foi delicioso ler esse texto! Eu tinha uns 18 anos quando assisti ao “O bem dotado de Itu” com meu namorado (hoje marido) numa das pouquíssimas vezes que meu pai nos deixou ir ao cinema! hahahaha
    Parabéns pelos seus textos!!!

Comments are closed.