Publico aqui matéria da Folha de São Paulo – que me foi enviada por e-mail – com o resumo da argumentação a favor das cotas raciais feito pelo historiador Luiz Felipe de Alencastro no STF, na ação sobre a inconstitucionalidade das cotas movida no Supremo Tribunal Federal. O bom artigo resume várias dos argumentos daqueles favoráveis à manutenção das cotas.

Particularmente acredito que é um bom instrumento de tornar o país mais justo, talvez combinado com algum tipo de cota para estudantes de baixa renda. Até pela minha própria experiência de sair de um panorama de dificuldades financeiras para conseguir me estabelecer com sucesso, sei que muitos Pedros Migões ficaram pelo caminho. Muitas vezes até com mais potencial que eu e com a mesma perseverança, mas com dificuldades maiores.

Aproveito para reproduzir cartaz (acima) que seria publicado no jornal O Globo defendendo o instituto das cotas. Entretanto, o jornal carioca cobrou um preço absurdo afirmando ser “opinião”. Na prática, uma censura branca.

O mesmo O Globo que tem como manda chuva um jornalista – sobre o qual escrevi aqui – que afirma que não existe racismo no Brasil e que coloca um jornalista negro para cobrir as folgas e finais de semana dos apresentadores brancos no jornal Nacional.

Vamos ao texto, lembrando aos leitores que o espaço está aberto para o debate.

Racismo e cotas
Pacto entre proprietários de escravos constitui o pecado original da sociedade e da ordem jurídica do Brasil

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
COLUNISTA DA FOLHA

 

Em 2010, os negros brasileiros passam a formar a maioria da população do país. A mudança vai muito além da demografia. Ela traz ensinamentos sobre o nosso passado e desafios para o nosso futuro.

No século 19, o Império do Brasil aparece como a única nação que praticava o tráfico negreiro em larga escala.

Alvo da pressão britânica, o comércio de africanos passou a ser proscrito por uma rede de tratados que a Inglaterra teceu no Atlântico. Na sequência do tratado de 1826, a lei de 7 de novembro de 1831 proibiu o comércio de africanos no Brasil.

Entretanto, 760 mil indivíduos vindos da África foram trazidos entre 1831 e 1856, num circuito de tráfico clandestino.

Ora, a lei de 1831 assegurava a liberdade imediata aos africanos introduzidos no país após a proibição.

A partir daí, os alegados proprietários desses indivíduos livres eram considerados sequestradores, incorrendo nas sanções do artigo 179 do Código Criminal de 1830.

Porém, o governo imperial anistiou, na prática, os senhores culpados do crime de sequestro, deixando livre curso ao crime correlato, a escravização de pessoas livres.

Imoral e ilegal

Os 760 mil africanos desembarcados até 1856 -e a totalidade de seus descendentes- continuaram sendo mantidos ilegalmente na escravidão até 1888. Ou seja, boa parte das duas últimas gerações de indivíduos escravizados no Brasil não era escrava. Moralmente ilegítima, a escravidão do Império era ainda -primeiro e sobretudo- ilegal.

Tenho para mim que esse pacto dos sequestradores constitui o pecado original da sociedade e da ordem jurídica brasileira. Firmava-se o princípio da impunidade e do casuísmo da lei. Consequentemente, não são só os negros brasileiros que pagam o preço da herança escravista.

Outra deformidade gerada pelo sistema refere-se à violência policial.

Depois da Independência, no Brasil, como no sul dos EUA, o escravismo passou a ser consubstancial à organização das instituições nacionais.

Entre as múltiplas contradições engendradas por essa situação, uma relevava do Código Penal: como punir o escravo delinquente sem encarcerá-lo, sem privar o senhor do usufruto do trabalho do cativo que cumpria pena de prisão? O quadro legal definiu-se em dois tempos. Primeiro, a Constituição de 1824 garantiu, no artigo 179, a extinção das punições físicas. “Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de ferro quente e todas as mais penas cruéis.”

Conforme os princípios do iluminismo, ficavam preservadas as liberdades e a dignidade dos homens livres. Num segundo momento, o artigo 60 do Código Criminal reatualiza a pena de tortura: “Se o réu for escravo e incorrer em pena que não seja a capital ou de galés, será condenado na de açoites…”.

Com o açoite, com a tortura, podia-se punir sem encarcerar: estava resolvido o dilema. Oficializada até o final do Império, essa prática punitiva atingiu as camadas desfavorecidas, travando o advento de uma política fundada na liberdade individual e nos direitos humanos. Uma terceira deformidade gerada pelo escravismo afeta o estatuto da cidadania.

É sabido que até a Lei Saraiva, de 1881, os analfabetos, incluindo negros alforriados, podiam ser eleitores de primeiro grau, que elegiam eleitores de segundo grau, os quais podiam eleger e ser eleitos parlamentares. Depois de 1881, foram suprimidos os dois graus de eleitores. Em 1882, o voto dos analfabetos foi vetado.

Decidida no contexto pré-abolicionista, a proibição buscava barrar o acesso do corpo eleitoral aos libertos. Gerou-se uma infracidadania que perdurou até 1985, quando foi autorizado o voto do analfabeto. Mas a exclusão foi mais impactante na população negra, em que o analfabetismo registrava, e continua registrando, taxas proporcionalmente mais altas do que entre os brancos.

Nascidas no século 19, as arbitrariedades engendradas pelo escravismo submergiram o país inteiro. Por essa razão, ao agir em sentido contrário, a redução das discriminações que ainda pesam sobre os negros consolidará nossa democracia.

Democracia

Não se trata aqui de uma lógica indenizatória, destinada a garantir direitos usurpados de uma comunidade específica -como foi o caso, em boa medida, nos julgamentos sobre as terras indígenas. Trata-se, sobretudo, de inscrever a discussão sobre as cotas no aperfeiçoamento da democracia.
 

Nesse sentido, a arguição de inconstitucionalidade impetrada no Supremo Tribunal Federal [que analisa a constitucionalidade do sistema de cotas da Universidade de Brasília] revela-se obsoleta. Na verdade, as cotas raciais beneficiaram e beneficiam dezenas de milhares de estudantes nas universidades privadas no quadro do ProUni e 52 mil estudantes nas universidades públicas, funcionando há vários anos, com grande proveito para a comunidade acadêmica e para o país.

Os incidentes suscitados pelas cotas raciais são mínimos e muitíssimo menos graves do que as truculências perpetradas nos trotes universitários. Como no caso do plebiscito sobre o presidencialismo e o parlamentarismo, o debate sobre as cotas raciais atravessa as linhas partidárias. Aliás, as primeiras medidas de política afirmativa relativas à população negra foram tomadas, como é conhecido, pelo governo FHC.

A existência de alianças transversais deve nos conduzir, mesmo em ano de eleição, a um debate onde os argumentos possam ser analisados a fim de contribuir para a superação da desigualdade racial que pesa sobre a democracia brasileira.

LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO é historiador e professor na Universidade de Paris 4. Este artigo é um resumo da fala apresentada no STF, como representante da Fundação Palmares.”

4 Replies to “Racismo e Cotas”

  1. Sou totalmente CONTRÁRIO a este sistema de cotas. O problema não está na COR DA PELE e sim na RENDA. Privilegiando negros em detrimento de brancos, incorre-se no mesmo erro do racismo que durante centenas de anos infligiu negros no Brasil.

    Um pobre branco/moreno que mora numa favela, mesmo com sistema de cotas, continuará marginalizado na sociedade.

    Pensem nisso.

  2. Quanto à questão do post, concordo com o Fabrício. Há uma questão do negro sim, mas a questão do pobre é muito maior. As cotas podem beneficiar o negro, mas em menor grau, beneficiando mais aquele que não teve condição de estudar em escolas particulares, mas em escolas públicas. O equivalente a conceder bolsas a estudantes pobres, quando a escola é particular. Eu, como beneficiário deste tipo de bolsa, sou francamente a favor.

    Quanto ao Globo tomei a única atitude que me restava quanto ao jornal que defende direitos humanos de bandidos, mas não defende direitos humanos do cidadão carioca: cancelei a assinatura do jornal. E os safados continuam entregando o jornal. Disseram que vão entregar até o fim do mês.

    Fazem o que querem, os atendentes vão ouvir o que não querem…

  3. Minha posição é parecida com a do Bruno, acho que pode ter uma cota por renda e, dentro dela, um percentual destinado a negros.

    Até porque estes são a maioria se pegarmos o critério por renda.

    eu quero escrever sobre o asusnto com calma mas como estarei a semana que vem inteira fora a trabalho está uma correria muito grande.

  4. Racismos

    Critiquei o sistema de cotas raciais antes mesmo que fosse adotado no país. Sempre me pareceu que a questão era conduzida com autoritarismo e mistificações, por parte de defensores e adversários. Políticas compensatórias deveriam objetivar a diminuição das desigualdades, nada mais. Inserir um diferencial étnico destrói esse espírito, principalmente onde os afro-descendentes representam a maioria da população.
    É perigoso abraçar o revanchismo histórico: todo radical possui algo de justiceiro. Basta lembrar, por exemplo, como os nazistas usaram a derrota na I Guerra e como o expansionismo israelense usa o Holocausto para justificar seus respectivos abusos. Podemos obrigar as gerações atuais a corrigir os erros de seus antepassados? Devemos cobrar o mesmo de Portugal, e nossos vizinhos da Espanha? Como satisfazer, daqui a séculos, quem responsabilizar as empresas transnacionais pelos males do mundo?
    As cotas serão endossadas pelo STF. Claro, será melhor assim, seus benefícios suplantam qualquer obstáculo teórico. Mas os protagonistas deste importante momento de reconstrução democrática poderiam deixar um legado menos maniqueísta e, enfim, “racial” para as sociedades futuras.

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