O texto publicado abaixo sobre o aniversário do Golpe Militar de 1964 suscitou um réplica bastante interessante do leitor e colunista Fabrício Gomes. Como historiador ele elaborou um texto que complementa e contextualiza com rigor científico o assunto tratado.
Divido com vocês abaixo, para comentários e análises.
“Discordo da abordagem histórica adotada no texto, a começar pelo título do artigo. Vamos então falar didaticamente, tentar explicar isso para todos entenderem: não houve um “golpe militar” e sim um “golpe CIVIL-MILITAR”. O acréscimo da palavra “civil” acontece aí justamente porque todo o aparato que envolveu o episódio contou com a ajuda (e anuência) da CLASSE MÉDIA, o principal sustentáculo do golpe.

A história (e os fatos) confirmam isso, quando pegamos, por exemplo, duas tentativas anteriores de golpe, tambem empreendidas pelos militares: em 1955, quando setores conservadores do Exército a pedido do então presidente Carlos Luz – e tambem do ex-presidente Café Filho – tentaram impedir a posse de Juscelino sob o pretexto de que ele não tinha a maioria dos votos e, com isso, não poderia assumir. E em 1961 (quando novamente os mesmos setores conservadores, personificados pela UDN, após a renúncia de Jânio Quadros, tentaram impedir a posse do então vice-presidente João Goulart, que se encontrava em viagem a China – até tentativa de assassinato a Jango foi pensada, leiam sobre a “Operação Mosquito”, tentativa de abater o avião de Jango em seu retorno ao Brasil – na ocasião, o golpe foi abafado pela Rede da Legalidade do governador do RS, Leonel Brizola.

Através desses dois exemplos, percebemos claramente que houve frustração dos golpes justamente porque a classe média não chancelou aquele empreendimento. Em ambos os casos, próprios setores do Exército, legalistas, inibiram a ação golpista. Em 1955, o então Ministro da Guerra, general Henrique Teixeira Duffles Lott, com sua “novembrada”, garantiu a posse de JK; e em 1961, a atuação imprescindível do General Machado Lopes, comandante do III Exército (Rio Grande do Sul), que ao se dirigir ao Palacio Piratini, sede do Governo daquele Estado, para prender Brizola acabou aderindo à Rede da Legalidade.

No caso de 1961, o Exército “calou a boca” mediante a instauração de um novo modo de governo, o Parlamentarismo – que restringia a atuação de Jango e transformava a presidencia da República num cargo pra lá de simbólico. Quem mandava mesmo era o primeiro-ministro Tancredo Neves. A partir de 1963, o quadro mudou, mais precisamente em 06 de janeiro daquele ano, com o plebiscito que definiu o retorno do regime presidencialista. Com isso, Jango readquiria plenos poderes.

A figura de João Goulart é bastante emblemática nesse sentido: para alguns, um trabalhista histórico, herdeiro político de Getúlio Vargas. Jango seria incensado por seu padrinho político, que o prestigiara em seu segundo governo, elevando Jango a Ministro do Trabalho (um cargo que historicamente era destinado sempre ao PTB). Para outros Jango era um comunista infiltrado no Planalto, incentivador de uma República Sindicalista e influenciado diretamente por seu cunhado Brizola. Mas na verdade Jango não passava de um nacionalista: mas não a ponto de rejeitar capital estrangeiro. É válido lembrar que antes do Golpe Jango visitou os EUA e foi bem recebido por lá.

É preciso também levar em conta o panorama geopolítico da época: fim da década de 1950, início dos anos 1960, tivemos a Revolução Cubana acontecendo em Cuba (1959) – a propósito, tambem uma revolução nacionalista. O rótulo de “revolução comunista” só veio 2 anos depois. No contexto da Guerra Fria, o mundo polarizava-se entre EUA e URSS e quem se alinhava a um lado, era considerado inimigo do outro. Os EUA, diante do exemplo cubano, resolveu implementar uma política que observava diretamente os países da America Latina e Terceiro Mundo.

Ser nacionalista naquela época era ter a possibilidade de ser confundido com a vermelhidão ideológica importada de Moscou. E isso é logico que assustava a classe média, que foi alertada do perigo comunista. Apesar de toda propaganda ideológica feita por instituições como o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais – dirigido pelo General Golbery do Couto Silva), IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), CAMDE (Campanha da Mulher pela Democracia) entre outros, fica difícil acreditar que milhões de pessoas pudessem servir de massa de manobra; sendo totalmente manipuladas por meios de comunicação da época (que inclusive eram mais distintos em opinião do que temos hoje, com o predomínio de uma emissora de TV apenas). Não é possivel que aqueles institutos pudessem enganar tanta gente – o que nos leva a refletir que, de alguma forma, a classe média brasileira se identificava, de fato, com o medo ao perigo comunista e a restrição às liberdades impostas por seu exemplo mais emblemático – o regime cubano, do ditador Fidel Castro.

As Marchas da Família com Deus e pela Liberdade levavam, em media, 500 mil pessoas, em várias capitais do Brasil: Rio, São Paulo, Recife, Porto Alegre, Belo Horizonte etc. Houve uma grande mobilização popular. Setores conservadores das Forças Armadas contariam então,com o elemento que lhes faltou nas duas tentativas anteriores de golpe, em 1955 e 1961: a classe média.

É bom ressaltar, porém, que as Forças Armadas não eram um bloco monolítico: no interior das Armas, várias cisões existiam. Nas eleições do Clube Militar, em 1962, disputavam chapas que eram nacionalistas (apelidadas de comunistas) e chapas anti-nacionalistas (apelidadas de entreguistas). Venceu a chapa anti-nacionalista. Era comum então, os rumos do Exército serem direcionados pelos resultados das eleições no Clube Militar. Mas dentro do próprio Exercito havia sim setores identificados com Jango, que concordavam com sua política.

Friso isso porque o senso comum aponta para uma certa polarização integral na epoca: Jango x Militares. Tal compreensão do fato é equivocada. O proprio dispositivo militar que cercava Jango (comandado pelo Ministro da Guerra, general Jair Dantas Ribeiro) é um exemplo de que havia um racha no proprio exercito sobre isso. O comandande do II Exército, Amaury Kruel, lotado em São Paulo era amigo pessoal de Jango, tendo seu filho conseguido um emprego público a graças intervenção do presidente. O general Kruel poderia perfeitamente garantir a permanencia de Jango no poder – e realmente houve uma negociação para isso, mas a imposição dada seria que Jango se desfizesse de Brizola e da CGT – o que Jango recusou veementemente.

Entendendo tambem a práxis política e operacional do Governo Jango é interessante perceber que o presidente não contava com a simpatia da propria esquerda da época. Luis Carlos Prestes e outros comunistas históricos viam o governo tomar atitudes de morosidade diante do cenário da epoca. Achavam que Jango estava indo muito devagar e que o presidente cedia aos interesses “imperialistas” (o que quebra a versão de que Jango era contrario totalmente aos EUA). Leonel Brizola inclusive queria assumir a Pasta da Fazenda em 1963 – fato que não ocorreu. O ex-governador, deputado mais votado no Estado da Guanabara, discordava veementemente das posições de Jango – inclusive sua participação no comício da Central em 13 de abril deu-se apenas de ultima hora, pois Jango não concordava em ser influenciado por ele.

É bem possivel que Jango fosse muito indeciso em suas ações. E isto de fato colaborou para sua deposição em 01/04/1964. Era alvo de críticas da esquerda e da direita justamente por não se posicionar. Acreditava-se que daria um golpe em 01 de maio de 1964 – o que nunca ficou provado.

Finalizando, acho completamente sem fundamento comparar Lula com Jango, principalmente porque Lula conta em seu governo (ou com a simpatia), com ex-arenistas históricos – Sarney, Collor, Maluf, Francisco Dornelles, Jader Barbalho, entre outros antigos “coronéis” da ditadura. Outro erro é apontar apenas a UDN como partido que apoiava o golpe. Juscelino também apoiou o golpe, pois estava interessado nas eleições de 1965.

Criar um clima de golpismo, afirmando que “dependendo dos resultados de outubro/2010, os rumos podem mudar”, é, na minha visão, atitude precipitada e que vai contra as regras de uma democracia. Assim como Lula assumiu o governo em 2003, o partido derrotado seja qual for deveria aceitar o resultado tal como ele emergir das urnas. É a regra do jogo político.

Tanto JK como outros políticos e a classe média se arrependeram a partir de 1965/1966 ao perceber os rumos que o regime tomava. O general Humberto de Alencar Castello Branco assumiu a presidencia querendo promover eleições presidenciais em 1965. Mas novamente setores conservadores de dentro do exército não concordavam com isso. A ascensão do general Costa e Silva pode ser entendida então como “um golpe dentro do golpe”. Depois vieram AI-5, acirramento de perseguições políticas, etc etc etc, mas aí já é assunto para outro post futuro.”