Quarta feira, dia de nossa coluna sobre Ciência e Tecnologia, a “Formaturas, Batizados & Afins”. O tema de hoje é o recente incêndio ocorrido no Instituto Butantan e seus desdobramentos.
Vamos ao texto, como sempre de autoria do Professor de Biofísica da UFRJ Marcelo Einicker.
“Entre cobras e lagartos

Caros amigos,
O mês de maio foi intenso em matérias dedicadas ao cenário científico. A criação da primeira célula “artificial” (tema desta coluna na sua edição passada) acabou atropelando um episódio triste de nossa Ciência – o incêndio no prédio do Instituto Butantan em São Paulo. A escolha deste tema é decorrência não apenas da catástrofe e perda que gera um incêndio numa instituição de pesquisa, mas também da incrível revelação de opiniões equivocadas de um de seus ex-presidentes.
Um pouco de história
Em 1898, após um surto epidêmico de peste bubônica no porto de Santos, identificado por um grupo de profissionais de saúde no qual trabalhava o celébre médico e cientista brasileiro Vital Brazil, o governo decidiu por instalar um laboratório que produzisse algum medicamento contra este surto em local distante do centro da cidade. O lugar escolhido foi a Fazenda Butantan. Por conta disso, em homenagem a ela, em 23 de fevereiro de 1901 foi oficialmente criado o Instituto Serumtherapico, posteriormente denominado Instituto Butantan. A partir daí o Instituto foi ganhando prestígio e sendo ampliado para que pudesse receber novos laboratórios.
Hoje o Instituto Butantan é um centro de pesquisa biomédica vinculado à Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e responsável pela produção de mais de 80% de todas as vacinas e soros utilizados no Brasil. Sua missão institucional é desenvolver estudos em pesquisa básica na área de Biologia e Biomedicina relacionadas direta ou indiretamente com a saúde pública, além é claro de sua função de centro nacional de produtor de soros e vacinas. Por sua fama e beleza, o Instituto Butantan é um dos pontos turísticos mais visitados de São Paulo, e abriga três museus (Biológico, Histórico e Microbiológico) e um parque belíssimo.
Endereço e serviço:
Instituto Butantan
Avenida Vital Brasil, 1.500 – Butantã – Zona Oeste (trem Hebraica Rebouças)
Tel.: (11) 3726-7222
Site: www.butantan.gov.br
Horário: De terça a domingo, das 9h às 16:30h
Preço: adultos pagam R$ 6, crianças acima de sete anos e estudantes pagam R$ 2,50 e menores de sete anos e idosos são isentos.
O incêndio
No dia 15 de maio de 2010, um incêndio provavelmente causado por curto circuito, destruiu boa parte das instalações do Laboratório de répteis do Instituto Butantan, onde estava o maior acervo de cobras, lagartos, escorpiões e aranhas catalogados no mundo. Na manhã daquele sábado a perspectiva era de uma perda irreparável de anos de pesquisa científica e destruição de exemplares únicos de animais encontrados em expedições científicas pelo Brasil e pelo mundo. Após a operação rescaldo feita pelos bombeiros, pesquisadores, funcionários e estagiários agiram em mutirão para tentar salvar o máximo possível deste acervo de forma que pudesse ser re-organizado posteriormente. Alguns dias depois do incêndio, uma estimativa mais concreta dá conta de que mais de 60% do acervo foi salvo, trazendo um sentimento de um pouco de alívio por não ter havido uma perda completa da coleção. Obviamente a maioria dos exemplares atingidos pelo fogo estavam já mortos e preservados em recipientes de vidro com álcool 70%, ou formol, método muito eficiente para a preservação e usado por laboratórios e museus.  Aqui vale ressaltar que graças ao trabalho de observação, coleta, descrição e classificação destas espécies de animais que estavam no acervo atingido é que foi possível o início do desenvolvimento dos soros e antídotos contra os venenos e toxinas produzidas por estes animais. Coleções biológicas como esta do acervo atingido no Instituto Butantan são os testemunhos materiais da biodiversidade de um país. Nelas estão depositados exemplares raros ou não, mas todos com importância e valor científico infinito. Esta informação é importante, pois infelizmente ainda existe quem acha que é uma besteira manter uma coleção de animais mortos preservados em formol num laboratório…e pior que isso…uma das pessoas que pensa assim é um dos ex-Diretores do Instituto Butantan, Dr. Isaias Raw.
A polêmica das declarações do Dr. Raw

Alguns dias depois do incendio, em entrevistas à imprensa, o ex-diretor da Fundação Butantan (braço privado que faz a gestão financeira do Instituto), Dr. Isaias Raw, defendeu a priorização da produção de vacinas no Instituto e menosprezou as pesquisas

feitas com a coleção. Entre outras barbaridades, Raw disse que a função do Butantan era salvar vidas e não “ficar brincando com cobra” e que a ciência feita pelos pesquisadores da coleção era de “quinta categoria”, referindo-se ao que considera pouca produção científica (artigos publicados e financiamentos obtidos) por parte dos pesquisadores da parte mais biológica do Butantan. Para o público leigo uma declaração destas feita por um importante cientista como o Dr. Raw, desqualifica a pesquisa mais básica que consiste em muitos casos de expedições que duram semanas, e até meses a zonas remotas para observação e coleta de exemplares de animais, que de novo ressalto, consistem na base para o início da produção dos soros e vacinas enaltecida pelo ex-Diretor. Também, as milhares de pessoas que visitam o Instituto Butantan todos os meses, o fazem por curiosidade maior em ver os animais da coleção e não para olhar a linha de produção de vacinas. Graças a estas coleções biológicas, e graças ao trabalho dos tais cientistas “de quinta categoria” (definidos por Raw), que se conhecem os nomes, os hábitats e o comportamento de todas essas cobras, lagartos, escorpiões e aranhas.

Uma crise de identidade Institucional?

Em outra parte da entrevista do Dr. Raw (Folha de São Paulo, 20/5/2010) ele disse: “Você acha que a função do Butantan é cuidar de cobra guardada em álcool ou fazer a vacina para as crianças?”, ou seja, para ele a instituição não deveria ou não poderia cuidar das duas coisas. Isso ilustra claramente uma “crise de identidade institucional”, deixando a instituição dividida sem entender sua função e, portanto, sujeita a ter uma parte negligenciada dependendo de que lado da dicotomia está seu diretor. Esta crise também já assolou outras instituições de renome, quando por esta mesma visão torpe, foram jogados no lixo milhares de lâminas contendo parasitas ( de inseto, mamíferos, aves, etc), milhares de exemplares de insetos, moluscos, etc, um verdadeiro crime! Não é possível estimar a quantidade de informações perdidas por atos como este. Que o fato triste do incêndio alerte o Governo para que injete mais recursos e indique profissionais competentes e comprometidos com todas as faces da pesquisa, seja o lado básico ou o lado clínico.

A sociedade científica chocada com o incendio e com as declarações de Raw

Obviamente após as declarações do Dr. Isaias Raw, uma série de manifestações públicas feitas por Biólogos e outros profissionais diretamente atingidos apareceram em jornais, blogs, revistas científicas e de opinião, etc. Para ilustrar este desabafo trago para esta página uma carta aberta que chegou a mim por e-mail, assinada por uma pesquisadora do Instituto Butantan. Como a mensagem foi enviada por uma grande amiga, creio que ela atesta a credibilidade da mesma. Segue o texto:

“Nós perdemos.

Neste sábado, dia 15 de maio de 2010, perdemos acervos valiosos no Instituto Butantan. O fogo levou um patrimônio que não poderá ser recuperado. Não sobrou quase nada para contar história. Não teremos de volta as dezenas de espécimes-tipo que foram queimadas ou os pouquíssimos exemplares coletados até hoje de uma espécie raríssima de boídeo, nem aquela cobra cega (seria ela hermafrodita?) que não existe em nenhuma outra coleção. Não teremos de volta as mais de 1,5 milhão de serpentes que foram entregues pela população ou coletadas por centenas de funcionários em viagens de campo e resgates de hidrelétricas durante mais de 110 anos. Nem os 450.000 artrópodes que foram retirados de seus ambientes de origem, muitos ainda a serem descritos. E o pior, não teremos de volta um registro histórico de uma época em que a população estabelecia um vínculo direto com a pesquisa, em que milhares de fornecedores foram responsáveis por influenciar os caminhos de pesquisa de uma instituição como o Butantan.

Garanto que maior do que a dor, hoje, é a revolta. Revolta por saber que a pesquisa básica neste país é negligenciada, revolta por saber que essa perda poderia ter sido evitada, revolta por saber que outras coleções e acervos correm o mesmo risco, revolta por ver que nada mudará. As reportagens televisivas mostraram o incêndio, mas terminaram suas falas

com as frases: “O Butantan produz 80% das vacinas e soros brasileiros. Esse serviço não foi afetado!” Como assim??!!! Quando perceberemos que para produzir soros, vacinas e biofármacos, precisamos de pesquisas, muitas delas feitas a partir de coleções como a que perdemos ontem? Quando consideraremos importantes as produções de conhecimento que não sejam unica e exclusivamente dirigidas à produção de bens de consumo imediato?

Estou triste, com dor, e muito indignada. Ainda mais por saber que a próxima notícia (que durará por volta de umas duas horas na mídia) será a perda de uma biblioteca inteira ou de qualquer outro acervo de nossas instituições de pesquisa. Esse é o nosso país, local em que nossos patrimônios são destruídos, todos os dias, indefinidamente…

Desculpem, queridos, mas estou indignada, não somente como pesquisadora que analisou mais de 600 exemplares dessa coleção durante o mestrado e traçou uma de suas possíveis histórias durante o doutorado, mas como cidadã que vê o descaso de nossos governantes (e de todos nós) perante o patrimônio cultural, aí incluso o científico, desse país!”

Abraços a todos,

Alessandra Bizerra

Pesquisadora Científica do Museu de Microbiologia do Instituto Butantan.

Ainda com relação a toda esta polêmica, o próprio Dr. Isaias Raw teve outra oportunidade de se pronunciar, e para não deixar mais extensa a coluna, deixo o link da resposta dele abaixo:

Pesquisa básica e pesquisa clínica a serviço do Brasil

Para fechar esta coluna, queria deixar a mensagem da impossibilidade de se qualificar qual dos dois lados é mais importante: a pesquisa básica ou a pesquisa clínica? Nunca vai haver pesquisa clínica sem os avanços e desenvolvimento do conhecimento acerca de determinado assunto conseguido na pesquisa básica. Mesmo que indiretamente o conhecimento gerado nos laboratórios de pesquisa básica, adicionam novas vertentes e novas perspectivas a assuntos muitas vezes não correlcionados. E tudo isso deve convergir para o nosso pleno desenvolvimento como Nação e como povo. Que a Ciência esteja unida e não dividida.

Até a próxima!”

2 Replies to “Formaturas, Batizados e Afins – "Entre Cobras e Lagartos"”

  1. Muito triste este incêncio, mas agora só nos resta lamentar!!!
    Este governo nunca se interessou por ciência… nunca defendeu o laboratório atacado pelo MST… já podemos chorar, pq ninguem fará nada!!!

  2. É verdade meu amigo. O MST trouxe milhões de prejuízo em investimentos em Biotecnologia não apenas para o setor de Papel e Celulose como na área de suco de laranja. E não se viu mesmo qualquer punição.

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