Já Morpheu, de André Moura, não está preocupado com o passado, mas, ao contrário, em viver o presente. Esse curta, ainda que irregular, surpreende por sua urgência, por sua necessidade de falar sem meios tons, sem sutilezas, sobre os desafios da vida e do mundo. O filme fala sobre um jovem que quer viver de forma intensa, livre e independente (em outros termos, que quer fazer a revolução) mas que ao mesmo tempo não consegue sair da casa de sua mãe (ou ainda, que nem tem a chave de casa). A forma como o diretor expõe os problemas desse jovem é muito frontal e direta. Ou ainda, desconcertantemente honesta. Todo esse impacto se multiplica pela intensa atuação de Jonnata Doll, músico, performer, ator, artista, que dá uma enorme vida a esse personagem. Uma verborragia que, por meio do seu excesso, sinaliza a vontade desse curta de se expressar, de dizer, mas sua incapacidade de de fato agir. Uma crítica ao mundo capitalista guiado pela mediocridade do trabalho como fim último da existência, mas uma dificuldade de encontrar saídas, de viver desse projeto de vida. É nesse limite entre a aventura do pensamento e o abismo da ação que Morpheu insere uma formidável autocrítica, num formato narrativo raro às produções locais. De outro lado, existem momentos de beleza, de espera, como os planos iniciais do filme, em que o protagonista se levanta, já depois do meio-dia, e vai se servir do almoço, sob os comentários irônicos de sua mãe. Morpheu foge de algumas armadilhas, e entre as cenas mais bonitas do curta, são as que o protagonista se relaciona com sua mãe. Em poucas palavras, em meios olhares, toda a dificuldade do contato, a reprovação e o afeto, se manifestam de forma simples mas intensa, numa estratégia de delicadeza um tanto atípica à energia radiante do curta. Mas que revelam que a busca do curta de André Moura vai além do mero tratamento de choque e das frases de efeito.
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As sessões dos filmes locais, como a Mostra Olhar do Ceará, possui momentos como a exibição do curta As Coisas São Bonitas Nos Olhos De Quem Acha, de Juliana Chagas. Trata-se de um documentário sobre Dona Dica, que faz bonecas de pano, costuradas à mão, em Guaramiranga. O curta registra de maneira singela essa humilde e simpática senhora, que faz bonecas aparentemente feias mas que seduzem as pessoas pela simplicidade de sua beleza. O curta é singelo, embora muito precário, seja tecnicamente seja em sua proposta estética, baseada quase que exclusivamente em entrevistas que meramente valorizam a simpatia da entrevistada mas que não avança em nada além disso. Mas a questão aqui não é essa: a exibição de As Coisas São Bonitas foi sem dúvida o maior momento do Olhar do Ceará, por algo que vai além do curta, além de suas possíveis qualidades estéticas: a presença física de Dona Dica, que ao final da sessão recebeu aplausos e abraços carinhosos, e, visivelmente emocionada, retribuiu as gentilezas com um sorriso. Momento lúdico, de rara beleza, em que aqui a análise se curva à possibilidade de que um filme promova um abraço carinhoso, uma pequena homenagem a uma mulher simples que cultiva a vida e a fabricação de suas bonecas. Nenhum outro momento de cinema nessa mostra teve tamanha força e vitalidade. Ainda que esse momento escape diretamente à força do filme em si, mas é claro que surge em decorrência dele, a partir dele. Esse simples curta possibilitou um encontro, que despontou ali, naquele cinema, naquela sessão, num contato com o público. É belo por isso. Acredito que é pela possibilidade desses encontros que essa mostra precisa ser defendida.”