Uso esse espaço e vez em quando para confessar algumas coisas que, em geral, o camarada só revela a um médium de mesa branca depois que vira defunto. Prefiro que eu mesmo me psicografe em vida, já que não sei se serei um morto confiável. Já revelei em outros textos, só para dar um exemplo, que um dos primeiros deslumbramentos eróticos que tive foi em um parque de diversões durante a transformação de uma jovem em Konga, a mulher gorila.  É hora de retomar as confissões.
Confesso aos senhores que durante a infância três assombrações foram capazes de tirar o meu sono: a mulher de branco, com sinistros algodões ensanguentados nas narinas, que atacava crianças em banheiros de colégios; o fantasma do presidente Getúlio Vargas [sempre tive pânico de fantasmas de suicídas] e o terrível Chico. É sobre o último que quero falar.
Acontece que eu tive na escola, quando estava [salvo enganos] no Jardim II, uma professora que  se sentia tão a vontade para lidar com crianças quanto um esquimó deve se sentir no calçadão de Bangu durante o verão. Dada a ataques furiosos, crises de choro e outros babados, a professora, uma vez por mês, se descabelava, ameaçava a garotada, revirava os olhos na órbita, dava urros imcompreensíveis, botava todo mundo de castigo e, subitamente, no meio do siricotico, gritava:
– Eu hoje não tô bem! Eu hoje mato um aluno! É o dia do Chico chegar… o Chico tá chegando!

Passei, desde então, a imaginar o tal do Chico como uma besta fera pior que os defuntos que pulavam o muro do cemitério para atacar as pessoas na calçada do São João Batista [coisa que a minha tia Lita jurava que ocorria toda segunda feira]. O Chico devia ser assustador. Provavelmente, imaginava, era o espírito de um homem mau que incorporava na minha professora uma vez por mês e era capaz das maiores barbaridades.

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O Dicionário do Folclore Brasileiro, do mestre Luiz da Câmara Cascudo, é um dos meus livros de cabeceira. Gosto, sobretudo, dos verbetes que falam sobre entidades fantasmagóricas do Brasil. Minhas prediletas são a Onça Borges e a Onça Cabocla, assombrações terríveis da região do vale do São Francisco, capazes de fazer o Lobisomem parecer tão feroz quanto Wilbor, o poodle gay da minha vizinha de porta.  
A Onça Borges é o vaqueiro Ventura, vítima do feitiço de uma velha índia. Ataca, especialmente, o gado miúdo. A Onça Cabocla é mesmo uma felina que, entretanto, tem o poder de se transformar em velha tapuia durante as madrugadas. Sintam o drama: o alimento predileto da Onça Cabocla é fígado humano e a bebida que mais agrada a bicha é o sangue da vítima.
Não há maneira de matar a Onça Cabocla, a não ser uma. Ela morre se for encarada, nos olhos, por uma mulher menstruada. Cai durinha da silva.
É mais ou menos como o Pai-do-Mato, famosa assombração das matas de Alagoas, que tem cabelos imensos, unhas de dez metros e orelhas de cavaco. Dá um urro que estronda em toda a mata e engole gente sem mastigar. Não pode ser morto por faca ou bala. Só há duas formas de liquidá-lo. Ou se acerta uma roda que ele tem no umbigo ou se coloca uma donzela menstruada na frente do monstro que, nesse caso, cai fulminado.
Esses fatos sugerem uma digressão. É impressionante como, no imaginário popular, o fluxo catamenial é tabu. Os antigos diziam que uma mulher menstruada não podia atravessar água corrente, passar perto de ninhos de aves, tocar em árvores com frutos verdes, fazer a cama de recém-casados, dar o primeiro banho numa criança, tocar em bebidas em processo de fermentação e outras coisas do tipo. Tudo que estivesse em desenvolvimento e fosse tocado por uma mulher nas regras, pereceria.
Essa, digamos, peculiaridade, talvez explique o porque da Onça Cabocla preferir encarar um sujeito barbado com uma espingarda a cruzar com a mais delicada das moças naquela fase. É fera pior que onça, capaz de matar a mais ardilosa das surucucus com uma simples pisada.
De minha parte, ouso dizer que temo mais a Onça Cabocla que a Onça Borges mas, sou obrigado a concordar com o povo , certas mulheres de chico, quando enfurecidas feito a minha professora, transformam as duas felinas do São Francisco em cordeiros mansos de fábula infantil. Nem o Pai-do-Mato pode com elas. Nestas horas prefiro mil vezes encarar as onças.
Abraços