Foi em setembro do ano passado, durante um caruru de Cosme, que eu e meu camarada Diego Moreira batemos um papo com minha tia  e madrinha Nadja sobre a encantaria brasileira. Relembramos, inclusive, a história de Catita, uma menina que se encantou em pedra de rio após se enforcar em um cipó de jetirana e quase morrer. Catita, ajuremada na natureza, virou passeadora e vinha dançar na guma no corpo de minha avó Deda.
A minha querida tia Nadja, filha de Deda e irmã de minha mãe, sabe do que está falando. Ela era o braço direito da minha avó no terreiro que a velha Deda comandava em Nova Iguaçu. Nessa nossa casa de xambá, onde cresci e aprendi a respeitar os caboclos, os mestres e as santas almas brasileiras, cantávamos frequentemente para os encantados. Duas das principais colaboradoras da avó na nossa guma eram a negra Luzia, uma maranhense que sabia tudo do tambor de mina, e  a grande tambozeira Raimunda de Deus Leal, a Mundica, paraense versada nas coisas do encanto.
Uma das melhores definições para os encantados que conheço – e que bate exatamente com o que aprendi desde moleque – foi dada pelo sacerdote Francelino de Shapanan, Abê Olokun do Ilê Axé Iemanjá, de São Luís do Maranhão. Diz ele:
Para o povo do tambor-de-mina, o encantado não é o espírito de um humano que morreu, que perdeu seu corpo físico , não sendo por conseguinte um egum. Ele se transformou, tomou outra feição, nova maneira de ser. Encantou-se, tomou nova forma de vida, numa planta, num acidente físico-geográfico, num peixe, num animal, virou vento, fumaça. Ele encantou-se e permaneceu com a mesma idade cronológica que tinha quando esse fato se deu.
Esse é o grande mistério e fascínio da encantaria. O mestre Dom Manuel, por exemplo, é um nobre que encantou-se na praia do Arraial, no Maranhão, e lá vive até hoje. É respeitadíssimo nas gumas do encanto, sendo conhecido como o Rei dos Mestres. É para ele que se canta uma famosa saudação, conhecida por todos os mineiros:
O meu mestre, Rei dos Mestres, chegou
E nesse salão entrou
Vem chegando e vem saudando o pecador
O meu mestre, Rei dos Mestres, já raiou
Outro grande mestre que tive a oportunidade de conhecer – e como dança bonito! – é o caboclo Japetequara. Encantou-se quando era muito velho, durante um cochilo após sua última batalha, e vive desde então no olho da ventania. Quando se manifesta num iniciado, apresenta-se como o ancião que era ao encantar-se durante o sono leve. É grande conselheiro e apresenta-se com seriedade, sem esboçar sorrisos ou brincadeiras. Conhece os mistérios da juremação e tem o dote da cura. Seu canto mais famoso diz:
Japetequara como é belo olodô
Naná ê, naná ê, como é belo olodô
Mas nem tudo é tão sério assim, feito o semblante do velho índio. A encantaria comporta, também, zombarias, festanças, desafios e arruaças. Quando, por exemplo, chega alguém na guma sem respeitar os mais velhos, sem cumprir os devidos rituais de chegada, a etiqueta manda que se repreenda o faltoso em tom de alegre brincadeira. Todos cantam mirando o infeliz:
Quando eu vim lá da Bahia
Dancei mina em Maranhão
Quando eu vim lá da Bahia
Dancei Mina em Maranhão
Tubarão tu não me morde
Eu abro os braços:
-Não, não, não!
Nos meus tempos de moleque adorava o fuzuê que se fazia quando esse canto era puxado, com todos os iniciados abrindo os braços para demonstrar que ninguém canta de galo no terreiro em que os encantados são os reis. Não me lembro de nada mais alegre e desafiador na minha vida.
Esse é o pedaço do  Brasil que me alumia, cada dia mais,  o dia todo.
Abraços

7 Replies to “MAIS DO BRASIL ALUMIADO”

  1. Lula
    “Pensando no Sebastião ou na Dora.”
    Passei o fim de semana pensando na Catita. Acho que Catita passeou lá por casa, eu disse este ano levarei uma bandeja de frutas para Catita e para Beijinho, qual foi minha surpresa quando hoje li seu blogger lembrei-me do ano passado não podemos deixar de fazer o Caruru, fala com Edu, eu ajudo também como puder contem com a minha colaboração. Beijos para vocês três. Tia Nadja

  2. Luis Antonio, que livros vc indica sobre o tema “Encantaria”, gostaria de saber mais sobre esse assunto…
    E eu na minha humilde condição de leigo no assunto, vejo em sua pessoa potencial para escrever sobre o assunto. Tá na hora de botar no papel essa cultura ‘oral’.
    Minha Tia, tem um marinheiro lindo…

  3. IMPLACÁVEL, sobre a Encantaria vale a pena consultar os trabalhos de um autor chamado Mundicarmo Ferreti. Reginaldo Prandi tem também um livro, lançado pela Palla, chamado A Encantaria Brasileira.

    Abraço.

    NADJA, viva a Catita!

  4. Lula
    A Catita é boa ela não mente ela não esta presa na corrente!!!!!!!!!!!!!
    Viva, viva, viva para a nossa Catita. Etá tempo bonito e bom.
    Me manda seu email mandei uma foto do Nei com Genaro não sei se você recebeu.
    Saudades

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