Após ausência, temos de volta a coluna “Cinecasulofilia”, publicada em conjunto com o blog de mesmo nome. Como sempre, texto do professor, cineasta e crítico Marcelo Ikeda.
bressonianas
“Fazer cinema não é espalhar certezas, é criar dúvidas. Pôr em crise. Desestabilizar. Pôr em xeque. Não sei qual é o filme que eu pensei ter feito. Não sei qual é o filme que eu pensei ter visto. Não sei mais o que é o cinema. Não sei mais o que é o mundo. Não sei mais quem eu sou. Ainda que isso não seja nada confortável. Viver, filmar, criar não pode ser confortável. Ser delicado não significa estar em conforto.
Quanto mais se reflete, quanto mais se pesquisa, quanto mais se debruça sobre ele, o filme, a vida, o cinema, o eu permanece sendo um mistério. Perseguir a dúvida sistematicamente.
Viver, filmar, escrever: estar na corda bamba, na ponta da navalha. Amar e sofrer. Mas sem anestesia. É preciso viver sem anestesia. Ainda que doa, e que não seja somente um pouco.
Ir além da superfície das coisas, das aparências que enganam, que nos confortam. O céu é azul. Será? Aproximarmos mais das coisas, para vislumbrarmos os semitons de azul, perceber que os tons não são homogêneos. Mas não aproximar demais a fim de que o contato distorça nossa percepção do mundo. Estar na corda-bamba entre as panorâmicas íntimas e o debruçar sobre os umbrais do mundo.
Fazer cinema é ver epifanias diárias. Da janela do ônibus, vejo um menino de dez anos tirar o canudinho de coca-cola de sua boca e o colocar na de sua mãe, enquanto ela segura duas sacolas de compras e espera o ônibus chegar. A beleza não está na imagem, está para além dela. A beleza está aquém e além da imagem, mas nunca nela mesma. A imagem não é o que ela mostra, mas o que ela esconde.
Encenar não é mostrar, organizar um mundo, mas apontar para o que se esconde. Desestabilizar mas não necessariamente fragmentar. Apontar não para o fora-de-quadro, mas para o além-do-quadro. Camadas: um olhar para “dentro”, e não para “fora”. Concentrar para aprofundar. Resumir para aprofundar. Diminuir para acrescentar. Subtrair para exponenciar.”