Cabral enfoca o início de carreira da cantora, onde ela chegou a trabalhar como dançarina em casas noturnas que seriam precursoras das atuais gafieiras. Não era o que o leitor pode estar imaginando; eram casas com o regulamento extremamente rígido e que haviam dançarinas especializadas nos diferentes ritmos.
Havia uma espécie de “cartão” que era picotado a cada música que os frequentadores dançavam com as moças – e o pagamento era feito ao final. Logo Elisete passou ao conjunto da casa noturna, com sua voz maravilhosa.
Daí para o rádio e, enfim,, o estrelato. Eram tempos em que a cultura popular brasileira era balizada pelo rádio e, posteriormente, a televisão.
Elisete se consolida como a grande intérprete dos grandes compositores. Em sua longa e vitoriosa carreira ela interpretou nomes como Ary Barroso, Cartola, Chico Buarque, Paulinho da Viola, Hermínio Belo de Carvalho, Nelson Cavaquinho, Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Lamartine Babo, Ataulfo Alves, Zé Kéti, Paulo César Pinheiro, Élton Medeiros e muitos outros. Como o leitor pode ver, uma verdadeira seleção brasileira.
Abaixo, “Sei Lá, Mangueira”, de Paulinho da Viola e Hermínio Belo.
Cabral também passa pela atribulada vida amorosa da cantora, que se casou duas vezes e teve um incontável número de namorados, em tempo em que isso era um tabu. O tema também traz ao livro a questão das hoje chamadas “revistas de celebridades”, que já naquela época publicavam notas maldosas e/ou inverídicas sobre as vidas dos grandes artistas.
Inclusive havia uma coluna muito famosa – que deu o nome ao que hoje é o arquétipo de “fofoqueira” – denominada “Mexericos da Candinha”, na “Revista do Rádio”.
O autor relata também a vida cotidiana da cantora, apoiado não somente na convivência pessoal como no depoimento de pessoas próximas. Elisete era uma pessoa muito simples, que gostava de cozinhar, da boa mesa e dos amigos e da família – um filho biológico e outra adotiva, que lhe deram netos.
Cabral mostra a relação da cantora com as escolas de samba, em especial com a Unidos de Lucas, agremiação da qual foi madrinha e posteriormente enredo, em 1974 – no final deste texto disponibilizo letra e áudio deste samba. Aí reside o único senão do livro: não fica explícita a relação da biografada com a Portela, sua escola de coração. Já no final do livro o autor escreve que Elisete “não perdia um desfile da escola na década de 80”, mas sem explicar o porquê daquela ligação ou se a cantora envolvera-se ou desfilara pela águia de Madureira anteriormente.
Na parte final da obra observa-se o progressivo afastamento da música da cantora das rádios, mas mantendo um público fiel para seus shows. Relatam-se as viagens ao Japão, abrindo mais um mercado para a música brasileira, e seus problemas com a indústria fonográfica em sua última década de vida. Nos dois derradeiros capítulos descreve-se a doença no estômago – um câncer – que acabaria por causar o seu falecimento em 07 de maio de 1990.
Ainda assim, a doença não afetaria a sua fantástica capacidade de interpretação e sua voz, como o vídeo abaixo, gravado poucos meses antes de sua morte, comprova. Observem a cantora interpretando, “à capella”, Ary Barroso:
Vendo e ouvindo estas gravações, fico entristecido em saber que apenas 20 anos após sua passagem a cantora está praticamente esquecida. Até as pessoas da minha geração – tenho 36 anos – conhecem muito pouco da obra da “Divina”, que foi a maior cantora da música popular brasileira durante décadas, reverenciada por nomes como Sarah Vaughan e outros.
Também não posso conter a minha tristeza ao observar – como escrevi em março – que a “cultura de massa” está cada vez mais medíocre, cada vez mais descartável, com qualidade dia a dia mais questionável. São manifestações que daqui a dois, três anos estarão esquecidas.
Outro ponto preocupante é observarmos que os principais compositores brasileiros de hoje são os mesmos da década de 60: Chico, Caetano, Paulinho da Viola, Gilberto Gil, Edu Lobo e outros do mesmo naipe. Não houve renovação, a meu ver muito pela progressiva “guetização” que a MPB sofreu em termos de rádios de massa e televisões abertas. Quando eles morrerem, quem restará ?
Também vale lembrar que em termos de intérpretes o quadro não é muito diferente, embora tenham surgido algumas boas cantoras: Adriana Calcanhoto, Ana Carolina, Teresa Cristina e mais uma ou duas. Uma curiosidade do livro é que das três cantoras que Elisete indicou como “sucessoras”, duas acabaram falecendo antes dela – Clara Nunes e Elis Regina. Restou apenas Maria Bethânia.
Cabral, na introdução, também explica a opção pela grafia “Elisete”, com a justificativa de que “a língua não pode ser submissa ao arbítrio dos cartórios.” Vale lembrar que a cantora foi registrada como “Elizette”.
Curiosamente, eu só tinha visto o livro para compra na outra ocasião em que estive em Campinas – onde adquiri meu exemplar. Aqui no Rio nunca vi o exemplar à venda, em lugar nenhum – e olha que sou rato de livrarias… Online a Submarino está com uma boa promoção, a R$ 29,90.
É uma biografia indispensável para se conhecer um pouco da história da MPB e de uma de suas maiores cantoras – que precisa ser relembrada.
Abaixo, o áudio e a letra do samba enredo em que a Unidos de Lucas homenageou-a, em 1974. A escola foi segunda colocada no Grupo 2, obtendo a ascensão ao grupo das grandes escolas de samba:
“Mulata Maior – A Divina Elizeth Cardoso
(Joãozinho Empolgação, Pedro Paulo e Zeca Melodia)
Puxador: Carlão Elegante