Os cantos de desafio são constantes ao longo da história humana e exemplos não faltam. Na Ilíada encontramos uma penca de cantos de provocação ao adversário. Certas torcidas de futebol – e eu acho que Homero e o futebol combinam maravilhosamente – são especialistas em espezinhar os rivais com gritos de guerra que fariam Ulisses parecer tão agressivo quanto uma Poliana moça. Até a torcida do América, atualmente composta pelo Felipinho Cereal, faz tremer as arquibancadas com o potente desafio ao som de Sangueeeeeeeeee!! – referência ao rubro da camisa e tentativa de intimidar os adversários.
Meu primo Luiz Orlando Neto é fundador e em certo momento foi o único membro da torcida Jovem Cadete, a maior organizada do São Cristovão de Futebol e Regatas. Em certa ocasião, durante um embate contra o Olaria, logo após um tento do esquadrão do São Cri-Cri, Luizinho virou-se para os dois torcedores do Olaria presentes e entoou o canto fabuloso:
Não tem conversa
Nem lero-lero
O São Cristovão
Manda em Figueira de Melo.
O canto do Luizinho foi escutado num raio que engloba a feira de São Cristovão, a Quinta da Boa Vista e a Estação de Trem da Leopoldina.
É famosa também, nessa questão dos cantos de arenga, a tradição do parraxaxá, nome dado aos insultos entoados pelos cangaceiros nos intervalos de batalhas (também acho, só para constar, que Homero e o cangaço combinam que é uma beleza). Todos os grupos de cangaceiros tinham um vasto repertório de cantos de guerra para desestabilizar os policiais. O bando de Jesuíno Brilhante, o maior gentil-homem da história do cangaço, costumava entoar o seguinte brado:
Sou do bando de Jesuíno
Não respeito policiá
Tenente até caga fino
Na ponta do meu punhá.
Eu num respeito fardado
Soldado nunca foi gente
Meu avô morreu de velho
Dando carreira em tenente.
Lampião gostava, entre uma pancadaria e outra, de escutar desafios entre os violeiros de São José do Egito, cidade pernambucana conhecida pelo talento dos seus repentistas. Achava, o Virgulino, que a arte da cantoria em desafio era a maior das sabedorias do homem.
Os cantos de insulto também são comuns nas rodas de capoeira, no partido-alto, nas curimbas e nos xaxados . A música brasileira ficou marcada pela famosa troca de gentilezas entre o jovem centenário Noel Rosa e Wilson Batista – polêmica  que rendeu ao cancioneiro popular um punhado de sambas da melhor qualidade. Noel, dentre tantos gracejos, chamou Wilson – metido a malandro que só – de “rapaz folgado” (expressão comum entre os malandros da época para definir quem tinha o fiofó alargado) e Wilson, implacável, apelidou o poeta de Frankestein da Vila.
Só acho, nessas arengas todas, que nenhum grego, troiano, cangaceiro, capoeirista, sambista ou torcedor, seria capaz de responder a um ponto de desafio do Exu Tranca Rua, que já escutei da boca do próprio em uma festa de curimba em Nova Iguaçu. Cantou Seu Tranca a um incauto cidadão que bancava o engraçadinho no terreiro:
Seu Tranca Rua é homem
Promete pra não pagar
Quatorze carros de lenha
Pra cozinhar gambá
A lenha tá se acabando
E a gambá
Tá pra cozinhar…
Eu sou Exu Tranca-Rua
E vim te desafiar
Quem promete a Tranca-Rua
Antes tem que pagar.
Se você não me confia
É só responder agora
Eu sou Exu Tranca-Rua
Eu moro onde você mora…
Alguém encara no parraxaxá esse personagem homérico, africano, índio e brasileiro, o Seu Tranca?
Abraços (e fiquem com Rapaz Folgado, do gênio da Vila, na voz de Aracy de Almeida)

2 Replies to “DESAFIOS NA HISTÓRIA – COM HOMERO, LAMPIÃO, EXU TRANCA RUA E UM SAMBA DE NOEL”

  1. Professor, não cheguei a fundar a Jovem Cadete – em Maio de 1991 – com seu primo mas fui um dos primeiros sócios.
    Inclusive eu e meu irmão herdamos as faixas, as bandeiras, as fichas de inscrição dos membros da torcida e algumas carteirinhas e fichas em branco.
    Hoje poucos componentes ainda vão aos jogos. Acho que só eu, meu irmão e o Raphael (professor de história como você).

    Abraços!

  2. Grande Simão, mais uma vez nos trazendo um texto digno de aplausos. Salve Tande Biar, camarada da zona norte, gente boa, tão honrado pelo tamanho de seu amor pelo São Cristóvão.Estamos aí, batalhando para que nossas equipes não sucumbam depois de inúmeras glórias. Vamos dar a volta, quem ri por último ri melhor.

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