Sobretudo – Reflexões em um dia nublado de dezembro
A viagem entre as estações de Capuava (em Mauá, no ABC paulista) e a Luz (no Centro de São Paulo) leva de 35 a 50 minutos. Nunca se sabe ao certo. Somando-se ainda os poucos minutos entre a minha casa e a Estação Capuava (de carro) e outros tantos entre a Luz e a Barra Funda (numa segunda linha de trem), a conta toda fica numa hora e meia para ir, outra para voltar.
Todo dia – duas vezes por dia na verdade – eu faço um esforço de abstração para que este percurso leve apenas uns poucos minutos nas profundezas da minha imaginação. Livros, revistas e MP3s são recursos comuns para isso. Outra atividade comum é pensar, simplesmente pensar. Sobre o dia, sobre coisas e pessoas, sobre a vida, sobre as notícias nos jornais. Às vezes, faço tudo isso ao mesmo tempo: leitura, música, pensar, anotar, me espremer entre outros passageiros, procurar um lugar vago para me sentar, olhar o relógio, ver passar alguém, deixar alguém passar, escrever mentalmente esta coluna.
Hoje (N. do E.: quarta, 08/12) o dia estava especialmente nublado. Quente, nublado, abafado desde as primeiras horas da manhã. Tudo se anunciava chato e cansativo, porque esta umidade calorenta infindável acaba com a disposição física de qualquer um. Um dia claro e quente não faz o mesmo estrago que um dia cinza e abafado. O nível de poluição deve estar altíssimo, pelo menos o ar parece pesado. O interior do trem (foto acima) na Linha 10, com ar-condicionado a mil, parece um oásis. Consigo lugar para me sentar. Bem ao lado de um moço gordo que mal cabe em sua metade do banco, mas não se pode exigir milagres. Aproveito para sacar um papel de rascunho e anotar algumas pendências, coisas sobre as quais eu aleatoriamente me lembro que gostaria de abordar aqui na coluna.
Vi uma boa entrevista de Paulo Henrique Amorim, no Domingo Espetacular da Record, com o Deputado eleito Tiririca. Papo franco, conversa sobre sua capacidade de entender textos, sobre seu conhecimento limitado das funções do Congresso, sobre suas intenções políticas. O futuro deputado prefere ser chamado pelo nome, Francisco Everardo, mas reconhece que é improvável que mesmo seus cologas de trabalho cogitem chama-lo por outro nome que não seu apelido de palhaço.
Não mudo minha opinião sobre o Tiririca: é um representante de uma categoria profissional como outra qualquer, os palhaços. Não me parece ser absurdo nenhum que um Congresso que abriga advogados, latifundiários, sindicalistas, militares, pastores, operários e professores também passe a abrigar um palhaço. Tiririca tem, obviamente, um preparo acadêmico e intelectual de pouco fôlego, mas também aí se confunde com a maioria dos seus colegas de política. Por outro lado, Tiririca me passou na entrevista um alto grau de confiança, uma sinceridade estonteante. Seria mais fácil entender sua expressiva votação e sua presença no Congresso caso pensássemos naquela casa como uma representação do povo brasileiro, e não esta visão equivocada de que o Congresso é o lugar de uma seleta parcela das elites brasileiras. Tiririca é tosco? Talvez, mas também é um brasileiro que ganha a vida com sua profissão, parece sincero e honesto e, se é ignorante, não é mais ou menos ignorante que a baixa média da população.
No mesmo programa, outra matéria falava do ocaso do Grupo Silvio Santos, mas abordava o tema de forma exemplarmente respeitosa com o empresário e apresentador da emissora rival. Para ser mais exato, o Domingo espetacular ia ao ao ao mesmo tempo em que o SBT transmitia o Programa Silvio Santos. A Record, além de bater o IBOPE de Silvio, bateu também a Globo por goleada durante a matéria que durou quase uma hora. O dado curioso é que a Globo não recuperou a liderança, porque a audiência da Record migrou de imediato para o SBT depois da matéria.
Este blog já abordou e inevitavelmente voltará a abordar o assunto Wikileaks. Portanto, passarei apenas tangencialmente por ele, mas não quero deixar de expressar que estou chocado com a perseguição que se moveu contra o Julian Assange. O governo norte-americano está se comportando como os piores ditadores de países terceiromundistas inexpressivos, movendo uma campanha baixa e difamatória contra alguém cujo “crime” é de opinião e expressão. Muito fácil falar de falta de liberdades na terra dos outros e agir desta maneira discricionária quando se aperta o próprio calo.
Com que autoridade os Estados Unidos podem vir a falar de países como Irã, China, Coréia do Norte, Cuba e Venezuela depois deste comportamento intolerável? E a cobertura da imprensa americana chega a ser constrangedora, um imprensa que apoia a censura e a repressão ao site. Imprensa por imprensa, uma outra reflexão: nesta hora, onde estão os patrulheiros de plantão que apontaram o dedo contra o Presidente Lula e o PT que, segundo eles, teria instintos democracidas? Cadê os editoriais da Folha, da Abril, do Estadão, do Globo, do JN e de toda a grande imprensa nacional a favor do Assange? Eu nem deveria, mas fico assutado com o cinismo dessa gente.
Por falar em cinismo, vi um trecho da entrevista de Fernando Henrique Cardoso ao dublê de jornalista e chapa-branca de plantão João Dória Jr. Mudei de canal antes de ter vontade de vomitar, tal a repulsa que a cara-de-pau de nosso ex-Presidente me provoca. FHC repete sempre o mesmo lenga-lenga a favor de um governo mais republicano, em que a coisa pública fosse afastada da vontade privada, um Estado mais profissionalizado e menos instrumentalizado a favor de interesses partidários. Quem vê e ouve até acreditaria que seu Governo tenha sido assim do jeito que ele tenta vender. Ao contrário, os tucanos no poder reproduzem exatamente tudo aquilo que dizem que nasceram para combater. O empreguismo e o uso desenfreado da máquina pública em São Paulo corrói cada canto do Governo estadual.
O próprio FHC abusou de seu poder presidencial usando a estrutura do Planalto a favor do projeto pessoal de reeleição. E ainda teva desfaçatez de elogiar Lula, na única coisa em que o elogiou, por ter fugido da tentação de se aventurar em busca de um terceiro mandato e não ter ferido nisso a Democracia. Como se ele, FHC, pudesse ter tido uma atitude de idêntica dignidade, logo ele que rasgou a Constituição em troca de mais quatro anos de poder. Para piorar, FHC ainda evoca a figura de Mario Covas nesta pseudo-cruzada republicana. Acontece que Covas foi um político cuja morte precoce impediu que o tempo e a prática administrativa contradissesse o seu discurso. Fica o crédito de um homem público com boas propostas e sua alma deveria ser deixada em paz por falsos pregadores.
Outro assunto com forte viés é a formação do gabinete do Governo Dilma. Se ela mudasse tudo, seria alvo de crítica, uma vez que o clamor das urnas apontava para um caminho de continuidade. No entanto, por mais que postos chave do novo Ministério estejam trocando de mãos (destaque para o Banco Central, mudança já comentada no Ouro de Tolo), Dilma está sendo acusada exatamente de continuísmo. Como disse o próprio Lula, estranho seria se ela convidasse a oposição, se ela andasse na contramão daquilo que era o esperado. Acontece que há um viés de crítica por parte da oposição.
Pior ainda é o comportamento de grande parte da imprensa que vê Dilma com olhos revanchistas de quem se sentiu derrotado por ela no pleito. Tudo pode acontecer em quatro anos, mas acho mais provável esta tendência dos grandes veículos de comunicação levar a uma incompatibilidade entre imprensa e público do que entre eleitor e governo. Em tempos de migração para os meios eletrônicos, como a internet, eu acho que a posição ideologizada dos proprietários dos veículos majoritários é um tiro nos pés.
Mas para não parecer que tudo é acerto no Governo que se iniciará em breve, e já que é moda criticar antes mesmo do seu início, acho um erro se falar em compra de um novo avião presidencial, e outro erro a demora de uma definição da eleita em relação a temas quentes da pauta política. Se Dilma já é julgada como Presidente, que não tenha medo de se pronunciar como tal.
Fim da viagem. Fim compulsório da lista de temas-pendências sobre os quais eu queria comentar. Na verdade, esta lista é infinita. Há muito mais na minha cabeça, e mais ainda será encontrado nas páginas dos jornais (impressos e eletrônicos) com as quais eu depararei hoje e nos próximos dias. Escrevi a coluna baseado na lista que fiz no trem, na manhã nublada descrita lá no segundo parágrafo.