Mais um domingo e temos uma edição especial da coluna “Bissexta”, do advogado Walter Monteiro. Digo que é especial porque joga luzes jurídicas sobre um caso para lá de intrincado e polêmico: a extradição ou não para a Itália de Cesari Battisti (foto).
Metendo a Mão no Vespeiro
Eu sou sempre cauteloso para manifestar opiniões sobre temas que envolvem direta ou indiretamente processos judiciais. Dou pitaco sobre tudo, futebol, política, economia e culinária, sob a desculpa de que posso falar a maior asneira sem me comprometer, porque dado o meu escasso conhecimento sobre esses assuntos palpitantes ninguém há de levar muito a sério o que falo.
Mas depois de 20 anos na lida, eu construí uma imagem de advogado razoavelmente sério, não fica bem dizer bobagem sobre coisa que eu supostamente conheço. E a melhor forma de tropeçar nessa hora é falar algo sobre um processo sem ter lido os autos. Mas é tanta bobagem que eu ando ouvindo sobre o caso Cesare Battisti que eu concluí que não seria nada demais se eu vier a dizer alguma tolice.
Portanto, vamos em frente.
Para compreender o caso, é preciso entrar no túnel do tempo e recuar até os anos 70. Da mesma forma que hoje pode parecer ridículo proibir o divórcio, naquela época parecia natural a alguns jovens europeus pegar em armas para derrubar o que chamavam de “sistema”. Muitos deles hoje são senhores de idade ainda em atuação na política institucional. Vários viraram ministros de estado, parlamentares, executivos bem posicionados e têm muito orgulho do seu passado, por mais que pareça estranho a todos nós que essa gente se vanglorie das bombas que explodiu e das vítimas tombadas pelo caminho.
Outros não tiveram a mesma sorte e é aí que entra o Sr. Battisti. A Itália, ao contrário da Alemanha, da França, dos países escandinavos, não foi tão condescendente assim com a rapaziada da extrema esquerda, até porque lá a turma andou pegando pesado demais e chegou a passar nos cobres e a sangue frio o primeiro ministro do país. Bom, a Itália continuou a processar, ainda que à revelia e nem sempre com a observância do chamado devido processo legal, todos os que participaram de ações armadas no passado.
A França, sob o governo do saudoso François Miterrand, resolveu conceder uma espécie de perdão a quem se envolveu em atividades armadas e estivesse arrependido. Assim, os italianos perseguidos se mudaram todos para lá e a França seguidas vezes negava os pedidos de extradição encaminhados pela Itália. Só que Miterrand morreu, os ventos progressistas franceses mudaram de lado e quando a direita tomou o poder, os italianos exilados sentiram que o caldo podia entornar.
Até ali, a situação de Battisti não era das piores. Ele fora condenado a 12 anos de cadeia, por participação em assaltos e receptação de armas – tudo, dentro de sua ótica particular, fazendo parte de um plano revolucionário.
O problema é que mesmo com o seu processo transitado em julgado, a justiça italiana, baseada em um único depoimento de um preso arrependido que em troca de benefícios na sua própria pena resolveu denunciar seus colegas, achou que era o caso de reabrir o processo e ampliar a condenação de Battisti – agora para prisão perpétua, com restrição de luz solar. Naturalmente, à revelia de Battisti, que seguia desfrutando da vida parisiense.
Quando a França, pela terceira vez, resolveu finalmente atender ao pedido de extradição, Battisti fez as malas e veio parar aqui, no nosso paraíso tropical. Onde, vale ressaltar, não está em Copacabana rodeado de belas mulatas, mas sim encarcerado em um presídio, desfrutando do costumeiro conforto desses estabelecimentos por estas bandas.
Para quem, como eu, foi criado sob uma doutrina jurídica de respeito à dignidade humana, ao devido processo legal e aos direitos do cidadão, é um absurdo que uma pessoa possa ser processada mais de uma vez pelo mesmo fato pelo qual recebeu uma sentença branda e que possa ser condenada a cumprir uma pena que implica em castigo corporal, como a restrição da luz solar.
Isso é o que bastaria para o Governo Brasileiro impedir a extradição de quem quer que seja, porque aqui não é a Casa da Mãe Joana, mas sim um país democrático, onde se respeitam as leis que dizem que o país não concederá extradição em casos como esses. Quem duvida, pode consultar o Estatuto do Estrangeiro, que disciplina a matéria.
De mais a mais, nossa Constituição impede a extradição de quem tenha cometido crime político. Se há alguma dúvida de que o crime de Battisti é político, a sentença que o condena a não ver a luz do sol a elimina. Vou transcrever um trecho da decisão do Tribunal de Milão:
[Battisti é integrante de] um só projeto criminoso, instigado publicamente para a prática dos crimes de associação subversiva constituída em quadrilha armada, de insurreição armada contra os poderes do Estado, de guerra civil e de qualquer maneira, por terem feito propaganda no território nacional para a subversão violenta do sistema econômico e social do próprio País”.
Bom, essa é só a minha opinião. Pode ser que realmente haja motivo para devolver Battisti aos italianos e deixá-lo apodrecer na cadeia. O Direito é bonito por isso, pela controvérsia, pela divergência. Mas só preciso repudiar com veemência essas macaquices de que a imagem do Brasil vai ficar abalada. Para os vira-latas complexados de sempre, três argumentos:
a) A França negou duas vezes a extradição de Battisti e mesmo a tendo concedido, ainda há vários outros “terroristas” italianos ainda em solo francês; não consta que isso tenha abalado a crença dos gauleses de que são e sempre serão o país mais sensacional do globo terrestre;
b) Quando eu era criança, um playboyzinho carioca chamado Michel Frank matou uma jovem depois de uma noite de orgia apenas porque estava entupido de cocaína e perdeu a noção do que fazia – condenado, foi se refugiar na Suíça; não consta que a Suíça tenha se enlutado por ter virado um abrigo de homicida, nem que o povo brasileiro tenha alterado a sua percepção de que a Suíça é o país mais perfeito do globo terrestre;
c) Ano passado o Brasil foi condenado em um tribunal internacional (a Corte Interamericana de Direitos Humanos) por se recusar a investigar os crimes praticados pela ditadura militar; não consta que esse mico planetário tenha provocado qualquer espasmo de indignação em todos os veículos de imprensa que agora martelam a nossa cabeça com o mantra de que passaremos vergonha com o caso de Cesare Battisti – aliás, a sentença vexatória e humilhante que nos condena sequer foi noticiada a contento.
Fique Battisti, extradite-se Battisti, temos que parar de ‘mimimi’ e aprender, definitivamente, que somos um país democrático, soberano e que, a despeito de nossas idiossincrasias, estamos muito bem na fita, obrigado.”
Walter, eu havia evitado mexer neste vespeiro por razões opostas às suas: não sou jurista, sequer tenho formação que me autorize colocar a mão em combuca de advogados, e temia que minha opinião pessoal não tivesse um mínimo de base técnica. Mas o que você diz, referendado por sua formação e experiência, era a minha intuição sobre o caso. E, digo mais: parece fazer todo o sentido. Gostaria muito de ler opinião contrária baseada em fatos e argumentos que fossem além desta bobagem de “a imagem do Brasil fica afetada”.