Bacharel e Advogado, cada um no seu quadrado
Embora passe despercebida para a maioria da população, é crescente uma movimentação destinada a acabar com o chamado “Exame de Ordem”, que é a prova aplicada pela OAB cuja aprovação permite a um graduado em Direito exercer a advocacia. Um desembargador federal, nem me lembro bem de onde, chegou a deferir a uns espertinhos o direito de exercer a advocacia sem passarem na prova, com o inacreditável argumento de que só as instituições de ensino é que podem avaliar a competência da cultura jurídica dos formados em Direito.
Diante de tamanha aberração e consciente de que o meu desempenho acadêmico na faculdade era, ao menos, razoável, pensei até em pegar um avião e me deslocar até a sede daquele tribunal para exigir que me titulassem membro da Corte, pois senhores tão liberais que enxergam inconstitucionalidade em qualquer exigenciazinha de exercício profissional por certo iriam concordar que eu exercesse a judicatura mesmo sem ter feito qualquer prova.
Há até um tal MNBD – Movimento Nacional de Bacharéis em Direito, criado com o objetivo de combater a “injustiça” do Exame de Ordem. Não dou muita bola para eles, até porque, do pouco que vi, notei que os moços têm uma dificuldade tão grande com a palavra escrita que abandonei seus arrazoados logo nas primeiras linhas.
Eu tenho um montão de anos na advocacia…20 anos, para ser mais preciso! Tenho a sorte de lidar com uma equipe razoavelmente grande de profissionais, pois a firma em que trabalho emprega mais de 150 colaboradores, em suas três unidades. Ao contrário de mim e de uns poucos sobreviventes, a maioria da equipe é marcadamente jovem. Isso me obriga a estar à frente de constantes processos de recrutamento e seleção de novos profissionais, para repor os que abandonam o barco por inúmeras razões. Não exigimos experiência prévia e nem mesmo um vasto conhecimento jurídico, apenas uma prova muito simples do beabá da advocacia contenciosa e uma redação de assuntos gerais. Nada é mais frustrante do que ler as provas dos candidatos… Raros, raríssimos mesmo, são aqueles que conseguem escrever um texto de dez parágrafos com começo, meio e fim, respeitando as regras ortográficas e gramaticais.
Isso, para mim, acima de qualquer discussão pseudo científica acerca da constitucionalidade ou não da exigência do exame, é um dado da realidade a gritar que alguém precisa evitar que a advocacia passe a ser exercida por analfabetos funcionais – porque pode ser duro, triste e inconveniente tocar nesse assunto, mas as faculdades de Direito da atualidade entregam milhares de diplomas para analfabetos funcionais (a definição conceitual de analfabetismo funcional é a capacidade plena de leitura sem a capacidade de interpretação de textos). Vou repetir, para que não fique nenhuma dúvida do que quero dizer: há milhares de estudantes e graduados em Direito que simplesmente não conseguem compreender um texto simples.
São poucos – se é que existem – os lugares do mundo em que o exercício da advocacia é uma consequência automática da mera graduação em Direito. A rigor, a legislação brasileira é até branda: o Exame da Ordem exige apenas que o candidato acerte METADE de 100 questões de múltipla escolha na fase classificatória e que tire nota 6 na fase discursiva, onde responde a 5 perguntas e prepara um exemplo de uma petição judicial, sendo que na 2ª fase o candidato ainda escolhe a área do Direito sobre a qual quer responder e pode consultar livremente toda a legislação.
Olha, isso é uma moleza em comparação ao drama de colegas advogados de outros países. Em muitos lugares há até mesmo diferenças dentro da carreira advocatícia. O exemplo mais conhecido é o da Inglaterra, onde a carreira é dividida entre ‘solicitors’ e ‘barristers’. Para exercer qualquer uma delas, o bacharel precisa ser aprovado pelo Colégio Profissional, sendo a principal diferença entre uma e outra o fato de que somente os barristers possuem licença para atuar nas instâncias superiores e, portanto, são mais valorizados.
Quem quer se tornar um barrister precisa, primeiramente, ser aprovado em uma rigorosa prova que vai lhe dar o privilégio de frequentar um curso de formação de 1 ano ou mais. Se ele for bem, ao final poderá se submeter ao exame de uma das 4 Sociedades capazes de conferir o grau de barrister, outra prova pra lá de cascuda. E nem assim o sujeito está pronto: ele precisará trabalhar como “pupilo” de um barrister mais experiente por 1 ano ou mais. Se tudo correr bem, o felizardo vira um junior barrister. Sim, porque as diferenças continuam – atuar na Corte Suprema e apagar o junior do cartão de visitas, só depois de 10 anos e comprovado sucesso na profissão, tanto assim que existem apenas pouco mais de mil profissionais nessa condição.
Na Alemanha, acreditem, é ainda pior. Há menos de cinquenta (!!!) advogados autorizados a atuar na Corte Suprema.
França, Espanha, Estados Unidos, Japão, China, Canadá, Nigéria, África do Sul, Coréia do Sul, enfim, onde eu olhei e pesquisei, encontrei exigências muito mais rígidas, sombrias e excludentes para a prática da advocacia. Melhor assim. Dependendo da sua magnitude, um processo judicial pode representar a diferença entre ser rico ou ser pobre, ser livre ou ser preso, ser indenizado ou não ser, ser feliz ou infeliz. E para quase todo mundo, o conhecimento de um advogado e a sua competência em conduzir uma causa são enormes pontos de interrogação.
Não deixa de ser um alívio que alguém se preocupe em indagar aos milhares de bacharéis formados a cada ano quais são as diferenças entre apelação, agravo, embargos e recurso inominado. Porque, não houvesse o Exame de Ordem, grassariam os casos de advogados que simplesmente não saberiam responder a algo tão singelo e rudimentar no cotidiano forense. Aliás, mesmo havendo o Exame… bom, deixa pra lá!
Tenho uma questão: porque é que não há-de ser o mercado a decidir quem tem qualidade, em vez de ser um grupo de profissionais da área já estabelecidos a fazê-lo?
um abraço
Reconheço que esse é um argumento recorrente dos defensores da extinção do Exame de Ordem.
Eu não concordo com ele porque, dentre uma série de outros motivos, a advocacia é uma profissão liberal e como tal não tem regras “de mercado”.
Aliás, o Código de Ética da advocacia é taxativo ao dizer que a advocacia é incompatível com qualquer atividade de mercantilização.