Dando seguimento à nossa programação carnavalesca, o tema de hoje da coluna do historiador Fabrício Gomes é a relação entre samba e História.

Carnaval. Doce ilusão?

“Carnaval
Doce ilusão
Dê-me um pouco de magia
De perfume e fantasia
E também de sedução
Quero sentir nas asas do infinito
Minha imaginação…”

Os primeiros versos do samba-de-enredo “Os cinco bailes da história do Rio”, composição de Silas de Oliveira, Dona Ivone Lara e Bacalhau, apresentado em 1965 pelo Império Serrano, não são apenas uma constatação. A imaginação que o samba fala vai muito de como é a percepção de cada um sobre o que, de fato, representa o desfile das escolas de samba.

Entra ano e sai ano vêm os desfiles das escolas de samba na Marquês de Sapucaí. Mais do que o espetáculo inconteste das escolas, das baterias, das fantasias e dos gigantescos carros alegóricos, desfilam pela Avenida um festival de celebridades e mulheres bonitas, praticamente seminuas, em busca de seus 15, 20 minutos de fama – podendo ganhar uma “sobrevida” caso alguma revista masculina convide alguma para ser garota da capa numa próxima edição.

Mas.. cabe a pergunta: “o carnaval é apenas contemplar corpos bonitos, bumbuns e paetês?”

Acredito que por trás do desfile das escolas de samba do carnaval carioca (e sem querer cair no erro do bairrismo, do carnaval paulista também), haja algo muito maior: não somente a embalagem, mas também conteúdo. Muito conteúdo. Além de ser uma manifestação cultural sem precedentes, o nosso carnaval (aí estendendo para outras praças, como Salvador, Recife, Olinda, Ouro Preto, entre outras) retrata também a riqueza antropológica, sociológica e musical de um povo.

No caso do desfile de uma escola de samba, muitas coisas estão implícitas. Assistir uma escola desfilando é como se estivéssemos numa aula de cultura, aprendendo o ponto de vista que o professor (o carnavalesco) daquela disciplina (escola/enredo) quisesse expressar aos alunos (o público presente na Sapucaí e na TV – OK, na TV ainda há um certo “intermediário”, os comentaristas, que inevitavelmente comentam seus pontos de vista e acabam por influenciar a “aula”). Variados enredos são apresentados, e no fim de uma, duas noites, temos a impressão de estarmos extasiados com a quantidade de informação disponibilizada.

Aí geralmente cabe a reflexão: “que prazer assistir a essa aula, não?”

Recentemente dois discos foram lançados no mercado fonográfico: “Aula de samba: a História do Brasil através do samba-enredo” (com simpática capa – acima – desenhada pelo cartunista Ziraldo, com diversas personagens importantes da História do Brasil) e “História do Brasil através do samba-enredo: o Negro no Brasil” (este na verdade, um relançamento, já que o original data de 1976). Em ambos os discos, há uma primorosa seleção de sambas-de-enredo que:

1) Abordaram personagens históricos, contando sua saga, suas lutas e influências;
2) Sambas-de-enredo que tiveram foco na questão do negro, na escravidão, no tráfico de escravos e na abolição da escravatura.

Realmente quem ouve os discos tem a impressão de estar numa aula de História. Estes discos são tão importantes que são constantemente utilizados em metodologias em História, nas salas de aula, como forma de aprendizado alternativo e mais simpático aos alunos, fugindo do velho recurso já batido de acreditar que monólogos e decorebas são as maneiras mais corretas de fazer com que alunos aprendam História.

Como percebemos então, o carnaval não é apenas uma “festa pagã”, lasciva e do pecado. Carnaval também é cultura. Muita cultura.

Ao longo de décadas, o desfile das escolas de samba teve muita história pra contar. Desde o Estado Novo, quando os desfiles eram utilizados como forma de “propaganda” do regime ditatorial de Vargas – as escolas levavam temas nacionais, geralmente contando a vida e obra de grandes personagens, na maioria das vezes simpáticos à causa republicana – mas atenção: quase nada sobre a República Velha (ou Primeira República, de acordo com a nova historiografia), já que a Revolução de 1930, da qual Vargas foi um dos principais nomes, queria justamente enterrar um passado identificado com militares jacobinistas associados a oligarcas (coronéis do agreste e antigos barões do café). Então era possível identificar Tiradentes, um dos principais símbolos que a República utilizou) em enredos, assim como nomes que fossem simpáticos ao regime.

A utilização de temas históricos foi se aprimorando. A Mangueira em 1956 apresentou o enredo “Homenagem a Getúlio Vargas, o grande presidente”, ficando em terceiro lugar; em 1958 a Portela foi campeã com o enredo “Vultos e efemérides do Brasil”, e no mesmo ano a Tupi de Brás de Pina apresentou o enredo “Inconfidência Mineira”, ficando em oitavo lugar. No desfile de 1962, por exemplo, praticamente todas as escolas desfilaram com enredos históricos – a Portela foi campeã com o enredo “Rugendas ou Viagens Pitorescas através do Brasil”. 

Nesta mesma década de 1960, o Salgueiro inaugurou uma nova concepção de desfiles, com Fernando Pamplona no comando, e levou vários de enredos históricos de causar inveja, sempre relacionados com a escravidão: “Quilombo dos Palmares” (1960), “Chica da Silva” (1963), “Chico Rei” (1964), “História da Liberdade no Brasil” (1967) e “Bahia de Todos os Deuses” (1969) – a escola ainda apresentaria enredos relacionados durante a década de 1970, como “Festa para um rei negro” (1971) – que ficou popularmente conhecido com o fabuloso refrão “Pega no Ganzê, Pega no Ganzá” – e “Valongo” (1976) – nome que era dado ao mercado de escravos próximo à região da Gamboa, centro do Rio, onde muitos que chegavam da África, em más condições físicas e de saúde, eram alocados à espera de senhores que os comprassem – a maioria morria ali mesmo, e o Valongo parecia um “açougue” humano.

No caso do Salgueiro é importante ressaltar o papel que a escola teve nos anos 1960, de levar enredos que falassem de temas arriscados como “liberdade”, “abolição”, “exploração de trabalho escravo”, justamente numa época onde, na política, temas como nacionalismo e anti-imperialismo eram belicosos. E depois de 1964, com a ascensão do regime militar, parecia mesmo uma provocação que a escola apresentasse, em 1967, um enredo que falasse sobre… “A História da Liberdade no Brasil”. E era mesmo.

Assim como o Império Serrano apresentou-se (e ainda se apresenta) sob a égide de ser uma escola de “resistência” – seu enredo de 2001 apresentou a história do Cais do Porto do Rio de Janeiro, e um dos versos do samba falava justamente sobre a estiva (trabalho de carga e descarga de navios ali parados), o que motivou, no início do século XX o surgimento do sindicato dos estivadores – o primeiro sindicato do Brasil. A trajetória imperiana em muito se confunde com isso: com a luta contra os poderosos dirigentes que comandam o carnaval, sempre buscando ressaltar valores como samba e tradição, entre outros, em detrimento de modernidades nem sempre tão saudáveis aos desfiles.

Certamente se eu fosse listar todas as escolas e enredos históricos, ao longo desses praticamente 80 anos de desfiles, só terminaria de escrever após o carnaval do ano que vem.

Entretanto, cabe chamarmos a atenção para a questão da letra dos sambas-de-enredo. 

Muitas delas hoje estão defasadas, tendo em vista que a historiografia se aprimora a cada ano, pesquisas e novos estudos são feitos sobre temas da nossa história. Um samba em especial merece destaque: “Liberdade, Liberdade, abre as asas sobre nós”, que elevou a Imperatriz Leopoldinense ao título máximo do carnaval em 1989, num desfile primoroso, recheado de emoção, com um samba considerado por muitos como antológico, tanto na letra, como na melodia. O enredo falava sobre o centenário da Proclamação da República (1889-1989).

Mas… se hoje a Imperatriz desfilasse com aquele samba, perderia preciosos pontos, já que o samba possui trechos que não soam mais verdadeiros. Em 1989 ainda não tínhamos estudos muito esclarecedores sobre o que foi realmente a Proclamação da República. Ainda não tínhamos a primeira eleição democrática para presidente, ainda vivíamos sob influência de ementas escolares que datavam das décadas anteriores (elaboradas pelo regime militar), ainda dava-se Educação Moral e Cívica nas escolas – uma disciplina que prezava e exaltava feitos militares, patriotismo etc – e certos temas ainda eram obscuros e muito complexos para fazer com que alunos entendessem.

Então era muito normal acreditar que o Marechal Deodoro da Fonseca tivesse proclamado a República com extremo vigor e que sua figura estivesse descolada por completo da Família Real. E que a abolição da escravatura em 1888 tivesse representado a liberdade, de fato, de todos os escravos. Convido o leitor então, para alguns comentários em torno da letra do samba da Imperatriz de 1989:

“Vem ver, vem reviver comigo amor
O centenário em poesia
Nesta pátria, mãe querida
O império decadente, muito rico, incoerente
Era fidalguia”

(Quanto a esse trecho em si, nenhum problema, embora fosse uma visão estritamente jacobinista republicana encarar a monarquia como sendo “incoerente”. Alguns jornais republicanos chegaram a publicar charges de D.Pedro II dormindo, refestelado em poltronas, como se estivesse alheio aos problemas do Brasil. Muitos acusavam-no de viajar pelo mundo, não tendo dom para governar o país. Em muitas ocasiões, a mandatária, de fato, era sua filha, a Princesa Isabel.)

“Surgem os tamborins, vem emoção
A bateria vem no pique da canção
E a nobreza enfeita o luxo do salão
Vem viver o sonho que sonhei
Ao longe faz-se ouvir
Tem verde e branco por aí
Brilhando na Sapucaí”

(Quando a letra diz que “a nobreza enfeita o luxo do salão”, refere-se ao último baile do Império, realizado na Ilha Fiscal, em 9 de novembro de 1889, a seis dias da Proclamação da República, e foi oferecido pelo Visconde de Ouro Preto à nação chilena e aos comandantes e oficiais, através do encouraçado “Almirante Cochrane”, que se encontrava atracado na Baía de Guanabara,. O evento acontecia como forma de agradecimento à recepção do navio brasileiro, quando este chegou a Valparaíso, no Chile. Os republicanos criticaram esse baile em exaustão, acusando o Império de esbanjar dinheiro e suntuosidade desnecessárias.)

Da guerra nunca mais
Esqueceremos do patrono, o duque imortal
A imigração floriu de cultura o Brasil
A música encanta e o povo canta assim”

(Exaltação à Guerra do Paraguai? Uma guerra que provocou baixas, onerou o Estado e tornou-se uma pedra no sapato para o Império? Certamente uma visão republicana de contar a história. E sobre o Duque de Caxias, alguns livros questionam sua verdadeira atitude dentro do Exército. Para muitos, era um homem “de gabinete”, cabendo ao General Osório, de fato, ser um oficial mais próximo dos combatentes. Quanto à imigração, a letra não erra quando ressalta a importância de novas culturas entrarem no Brasil.)

“Pra Isabel, a heroína
Que assinou a lei divina
Negro, dançou, comemorou o fim da sina”
 

(É inquestionável a importância que a Lei Áurea teve no processo histórico brasileiro. É correto também afirmar que os negros, antigos escravos, dançaram e comemoraram a abolição da escravatura. Mas a realidade imediatamente após a abolição, já com a República implantada no Brasil, foi bem diferente. Aí fazendo um gancho com o samba da Mangueira do ano anterior, que questionava também os 100 anos de liberdade (“Cem anos de Liberdade, Realidade ou Ilusão?”), onde a escola em certo trecho dizia que o negro estava “livre do açoite da senzala e preso na miséria da favela”, o samba da Imperatriz em 1989 soa como desconhecimento ou provocação, já que a maioria dos ex-escravos não tinha pra onde ir após estarem livres, indo viver nas favelas, e foi aos poucos sendo colocado debaixo do tapete pela aristocracia republicana.)

“Na noite quinze reluzente
Com a bravura, finalmente
O marechal que proclamou
Foi presidente”
 

(Outro erro histórico, analisado nos dias de hoje. A noite de 15 de novembro de 1889 foi tudo, menos reluzente como diz o samba. A Proclamação da República foi um golpe de estado onde a população apenas assistiu, bestializada, a tomada do poder por um grupo de militares. O próprio marechal Deodoro da Fonseca era amigo pessoal do imperador D. Pedro II e hesitou muito antes de se levantar da cama, enfermo, no meio da noite, para fazer a Proclamação. Isso está longe de ser um ato de bravura, não?)

Não é objetivo aqui falar que o este samba não possui méritos. E seria de uma total injustiça querer, 22 anos após aquele desfile, criticá-lo, inclusive porque seria uma atitude anacrônica fazer isso. Inclusive porque, como disse anteriormente, pesquisas históricas foram aprimoradas. O que fizemos aqui foi apenas um exercício de comparar uma letra de samba antigo com a realidade que a História hoje nos apresenta.

Portanto, carnaval é historia e os desfiles proporcionam verdadeiras aulas para nosso povo, tão carente de cultura e informação. Pena que seja apenas explorado sob o ponto de vista da festa, da lascividade e que o conteúdo que possam proporcionar ainda precise ser… proclamado!

Bom carnaval a todos! Estarei aqui comentando a transmissão televisiva dos desfiles. Até lá!