Felipe Ferreira (na foto, a meu lado de óculos, junto comigo e alguns integrantes da lista Rio-Carnaval), um dos maiores estudiosos e conhecedores do carnaval brasileiro, de suas manifestações, das escolas de samba e do carnaval no exterior. Professor do Instituto de Artes da Uerj, jurado do Prêmio “Estandarte de Ouro” do jornal O Globo, é autor da obra referência “O Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro”, que será relançada ainda em 2011. Sua escola de coração é a Imperatriz Leopoldinense.

É criador da lista de discussão por e-mail “Rio-Carnaval”, provavelmente uma das primeiras listas de discussão por e-mail do mundo – fundada em 1998. Faço parte dela e a partir daí surgiu um aprendizado e uma convivência bastante profícuas – com direito a piadas envolvendo a sua experiência no carnaval e o Zé Pereira…

1 – O desfile das escolas de samba vem sofrendo uma série de transformações nas últimas duas décadas. De que forma você analisa estas mudanças e qual o caminho que deveria ser seguido?
FF – As últimas duas décadas marcam a afirmação do estilo gerencial de abordar os desfiles das escolas de samba, muito por causa da organização, afirmação e reconhecimento por parte das autoridades da legitimidade da Liesa e da implantação dos barracões da Cidade do Samba. 
Com isto as escolas passaram a ser vistas como empresas que precisam ser otimizadas para cumprirem sua função. Reflexos disso são o enraizamento da idéia de que “todas as escolas entram na passarela com nota dez e vão perdendo pontos com possíveis erros cometidos” e a valorização das descrições do desfile que passa a ser acompanhado como uma espécie de “prestação de contas”, na forma de um projeto detalhado previamente divulgado. 
É este o caminho que as escolas e o mundo do samba têm apoiado, não sendo errado ou certo, mas uma opção pela qual todos os envolvidos no processo são responsáveis. Meu desejo pessoal é que as escola passassem a ser vistas como eventos dramáticos festivos populares, valorizadas pelas expressões de suas personalidades e dotadas de liberdade criativa antes e durante seus desfiles.
2 – Você já participou de cursos de formação de jurados do carnaval. Como funcionam estes cursos? De que forma o julgamento das escolas de samba pode ser aperfeiçoado a fim de se tornar mais fiel ao que se vê na avenida e, ao mesmo tempo, ser menos burocrático e mais criterioso?
FF – A formação dos jurados não pode se resumir a esmiuçar e fiscalizar o cumprimento de regras, mas, principalmente, fazer com que elas sejam interpretadas com bom senso. Um jurado não pode ser reduzido a um fiscal de posturas, devendo ser alguém capaz de perceber as propostas e cada escola e suas traduções no quesito que ele julgar. 
Por outro lado, os critérios de julgamento e de notas estão bastante defasados e precisam ser revistos urgentemente. Minha sugestão é que as escolas deixem de ser julgadas por notas, mas colocadas em ordem dentro de cada quesito. Acredito que reforçando a comparação entre as escolas poderemos evitar as notas benevolentes. 
Outra solução seria a ampliação do corpo de jurados para dez em cada quesito, espalhados sem identificação pela avenida. As notas que se afastassem excessivamente da média por quesito seriam eliminadas.
3 – Como você avaliaria a gestão atual das escolas de samba?
FF – Do ponto de vista empresarial as escolas têm demonstrado grande vigor [N.do E.: discordo desta afirmação, acho que a gestão das escolas é, ainda, bastante precária]. Não se pode negar seu crescimento em importância e visibilidade. 
Apesar de todas as expectativas em contrário, as escolas, assim como o interesse em torno delas, não pararam de crescer. Acredito, entretanto, que para o bem do evento, seria necessária uma participação maior do poder público que, como representante dos interesses da população, pudesse dialogar com a gestora do espetáculo, a Liesa, trazendo novas propostas e sugestões que pudessem se somar aos interesses empresariais atualmente vigentes.
4 – Como funciona o processo de escolha de ganhadores do “Estandarte de Ouro”?
FF – Cada quesito tem um relator, modificado a cada ano, que se encarrega de avaliar as questões relativas a ele e sugere os nomeados para o prêmio. Os outros membros discutem as ponderações do relator e podem sugerir outros nomeados. As escolhas são feitas a partir de votação universal que normalmente se segue a uma rodada de debates. O resultado final é abraçado por todos os membros.
5 – A Imperatriz vem passando por um período sem grandes resultados após uma era de glórias. De que forma você percebe o momento atual da escola? O que precisa fazer para voltar a disputar os primeiros lugares?
FF – A Imperatriz precisa reencontrar sua identidade, voltando a se ver como uma escola que alia luxo e originalidade. O momento atual está marcado por uma indecisão em termos plásticos mas, por outro lado, a escola vem recuperando a força de sua comunidade, de sua bateria e de sua ala de compositores.
6 – Que principais manifestações carnavalescas fora do Brasil você diria que são as mais importantes? Por quê?
FF – Existem muitas manifestações carnavalescas importantes fora do Brasil. Dentre elas destaco a Festa dos Gilles, na cidade de Binche, na Bélgica, pela força de sua tradicionalidade baseada em rituais minuciosamente seguidos. 
Muito imponente também são os desfiles de alegorias da Viareggio, na Itália, com imensos carros alegóricos carregando grandes esculturas móveis e grupos de dezenas de foliões fantasiados. Na América do Sul, destaco o carnaval de Barranquilha, na Colômbia, uma festa de ares caribenhos com muitas manifestações e rua; e a diablada de Oruro, na Bolívia, com uma grande variedade de grupos fantasiados em disputa, onde se destacam os famosos diabos, símbolos da resistência ao colonizador e da própria cidade.
7 – Por quê a literatura disponível sobre carnaval, especialmente em catálogo, é tão escassa?
FF – Atualmente já temos um volume considerável de livros abordando o carnaval. O problema é que boa parte deles não é produto de novas pesquisas, mas recompilações de obras clássicas tomadas como fontes inquestionáveis de uma suposta verdade carnavalesca. 
O resultado são obras que se reafirmam entre si, reiterando, pela repetição, conceitos e pesquisas que não mais respondem às questões contemporâneas. O aumento da quantidade de livros precisa ser acompanhado da ampliação da qualidade dos textos.
8 – Como surgiu a lista Rio-Carnaval? Como funciona hoje?
FF – A lista Rio-Carnaval surgiu em 15 de julho de 1998, criada por mim a partir da constatação de que era necessário ampliar o espaço de debates sobre o carnaval utilizando-se das novas ferramentas de comunicação recém disponibilizadas pela Internet. 
Seu pioneirismo lhe rendeu muitas tensões nos anos iniciais, o que teve como conseqüência o surgimento de novos grupos criados para acomodar vozes dissidentes. O amadurecimento de seus componentes faria com que, após algum tempo, a lista se estabilizasse, com os participantes percebendo a necessidade de se negociar as diferenças de opiniões. 
Hoje ela é um grande espaço de debates e trocas de informações sempre aberta a quem desejar participar de suas conversas [N.doE.: para participar basta clicar aqui]
9 – Quais as suas expectativas para os desfiles das escolas de samba dos principais grupos em 2011, em especial após este incêndio que deixou de fora três escolas do Grupo Especial?
FF – Minhas expectativas pouco mudaram. 
Penso que as escolas apresentarão um carnaval compatível com suas histórias recentes, incluindo as que sofreram com o incêndio, razão pela qual gostaria que todas fossem julgadas. 
Salgueiro, Unidos da Tijuca, Vila Isabel e Beija-flor, nessa ordem, parecem estar mais preparadas para brigar pelos primeiros lugares, por razões diversas, nem todas ligadas à qualidade dos barracões, mas ao próprio histórico destas escolas. Entretanto, não será surpresa para mim se a Mangueira conseguir superar suas dificuldades e apresentar um desfile capaz de levar a escola ao campeonato.
10 – Um desfile inesquecível. Por quê?
FF – Imperatriz, 1981 (acima). A beleza, originalidade e alegria do carnaval criado por Arlindo Rodrigues para a escola conseguiram a proeza de juntar primor visual, um samba alegre e original, um desfile solto e descontraído, a consagração da platéia e um campeonato incontestável. Isso tudo num carnaval considerado como um desempate do ano anterior em que a então pequena escola havia sido campeã junto com a Portela e a Beija-Flor.
11 – Um samba inesquecível? Por quê?
FF – Mocidade Independente, 1985. O samba alegre e moderno, daria o tom para os desfiles da escola a partir de então ao cantar “Sou a Mocidade, sou independente, vou a qualquer lugar”.
12 – Um livro inesquecível. Por quê?
FF – História do Carnaval Carioca, de Eneida de Moraes.

Livro importantíssimo que formulou a idéia que ainda temos sobre o carnaval. Se os conceitos ali contidos não podem mais ser vistos como verdades absolutas, a quantidade de informações e principalmente a consciência da autora, que não se propunha a dar a palavra final sobre o tema mas sim a abrir caminhos para futuros estudiosos do carnaval, nos dá a dimensão do valor desta pioneira dos estudos carnavalescos no país.

13 – Livro ou filme? Por quê?
FF – Impossível escolher.
14 – Finalizando, com os agradecimentos do Ouro de Tolo, algumas poucas palavras sobre o blog ou seu autor/editor.”
FF – Realizar um blog sobre carnaval é um ato heróico de dedicação! Parabéns