Na última sexta feira, apresentou-se o programa sobre Cartola da série “Por Toda a Minha Vida”, da Rede Globo de Televisão. Normalmente estes programas são transmitidos em um horário bastante ingrato – como, aliás, tudo o que não é descartável na emissora – mas como estava ainda no “fuso horário de carnaval” pude sentar-me para ver. E algumas lições podem ser tiradas do programa.

Antes de mais nada, o especial, misturando cenas gravadas por atores com imagens de época, traça um painel bastante adequado da vida e da obra do compositor e fundador da escola de samba Mangueira. Entrevistas com sua biógrafa e com familiares ajudam a reconstituir a passagem pela Terra do grande gênio.

A primeira lição a ser aprendida é ver a inversão de valores. Como bem lembrou no Twitter a jornalista Martha Esteves, como pode Cartola ter morrido pobre e Luan Santana, ainda um adolescente, ter um jatinho particular? Isto mostra o quão invertida está a pirâmide de valores na cultura de massa. Vale mais ter um bom esquema de marketing por trás e cantar bobagens que tratam o consumidor médio como idiotas do que ter uma obra rica, poética e, especialmente, perene.

Outro ponto é ver como desperdiçamos tempo com coisas absolutamente rotineiras, além de colocar a burocracia e o cumprimento de rotinas absolutamente irrelevantes e desnecessárias como prioridades máximas. Por mais que Cartola tivesse outros empregos, sua verdadeira vocação era a música, e mais especialmente a poesia. Mais cedo ou mais tarde ela se impôs e nos últimos anos de vida permitia um modesto ganha-pão ao gênio.

Vemos adicionalmente como temos gênios, ainda vivos, e que não tem o reconhecimento necessário. Cito dois aqui sem precisar parar para pensar: Élton Medeiros e Paulo Cesar Pinheiro, dois dos maiores compositores vivos que ainda temos, e que a esmagadora maioria da população simplesmente não conhece! No programa aparecem monstros sagrados como Nelson Cavaquinho e Elisete Cardoso, já falecidos, e que não obtiveram em vida o reconhecimento popular. Urge o resgate da memória desta cultura popular e destes artistas.

Percebe-se também como o espetáculo das escolas de samba cariocas está “descolado” do que lhe deu origem e de sua cultura. Hoje sauda-se Paulo Barros como um “revolucionário” quando na prática ele torna a manifestação cultural mais um show que propriamente a riquíssima cultura sambista da cidade. Além disso, todas as distorções geradas pela transformação anômala em “negócio” e todas as variáveis envolvidas nesta situação afastam cada vez mais o espetáculo do que lhe deu origem, suas raízes e tradições.

Entretanto, que fique claro: Paulo Barros é mais efeito que causa. Ao mesmo tempo em que distancia o espetáculo de suas raízes, trouxe uma oxigenação salutar à festa. O que se precisa é unir seus devaneios e suas idéias com uma maior valorização dos sambas – a Tijuca caiu muito em qualidade das composições depois da ida do carnavalesco para lá.

Destarte, é curioso ver que a “venda de sambas” dos tempos idos de sua carreira – e que já abordei aqui quando resenhei a biografia de Ataulfo Alves – se repete hoje nas escolas de samba, sob o nome de “pombo”: são sambas de enredo que são assinados por compositores mas compostos por outros – que ou não podem assinar em mais de uma escola por grupo ou não tem condições financeiras de bancar os altos custos de uma disputa, principalmente no Grupo Especial. A história muitas vezes se repete.

O programa tem como destaque a emoção proporcionada por suas músicas. Letras de ourivesaria como “Amor Proibido”, a primeira música que ouvi do Mestre – “Sabes que vou partir / Com os olhos rasos d’água / E o coração ferido” – ou a genial “Acontece” (acima, Cartola cantando com o luxuoso acompanhamento de Paulinho da Viola):

“Esquece o nosso amor, vê se esquece.
Porque tudo no mundo acontece
E acontece que eu já não sei mais amar.
Vai chorar, vai sofrer, e você não merece,
Mas isso acontece.
Acontece que o meu coração ficou frio
E o nosso ninho de amor está vazio.
Se eu ainda pudesse fingir que te amo,
Ah, se eu pudesse
Mas não quero, não devo fazê-lo,
Isso não acontece.”

Isso sem falar de canções como “As Rosas Não Falam”, “Tive Sim”, “Autonomia” e “Basta de Clamares Inocência”. Poesias musicadas por um autor que mal o curso primário tinha. Entretanto, o talento era mais forte que a falta de estudo formal, era mais forte que as dificuldades da vida e representavam um tempo onde, bem ou mal, a cultura de qualidade chegavam mais facilmente ao grande público.

Hoje o que vende são bobagens como “te dei o sol, te dei o mar / pra ganhar seu coração / você é raio de saudade / meteoro da paixão”, ‘cantadas’ pelo já citado Luan Santana. Se bem que eu talvez esteja errado: afinal de contas, ele já tem um jatinho de sua propriedade e não precisa dar expediente de nove às seis como o titular deste blog…

Finalizando, devo dizer que me vi aos prantos diversas vezes durante o programa: Cartola, sua vida e suas músicas fizeram me aflorar muitas emoções represadas. Para quem se dizia incapaz de chorar, foi uma surpresa e tanto – e que me fez parar para pensar em muitas, muitas coisas.

Infelizmente ainda não vi o programa disponível na internet, mas assim que estiver, leitor, não perca tempo: veja.

Indispensável.