Nesta quarta feira, a coluna “Sobretudo”, assinada pelo publicitário Affonso Romero, traz a impressão do DVD “Inclassificáveis”, do cantor Ney Matogrosso – que pode ser comprado aqui.
Não vi o show citado, nem ouvi – o que é uma falha imperdoável. Mas o cantor é um dos grandes intérpretes de nossa música.
Inclassificáveis

Era um fim de semana de muito cansaço. Eu tinha uma folga extra para tirar e havíamos planejado uma viagem a Serra Negra, interior de São Paulo, para descansar por três dias. Tudo deu errado, graças à ineficiência da pousada na reserva, coisas de um Brasil que ainda está longe de se mostrar um país desenvolvido em serviço, atendimento, enfim, coisas básicas para o desenvolvimento e que não têm nada a ver com governo.

Em casa, com a agenda vazia e o corpo moído, peguei uns DVDs para colocar em dia. Um deles, o espetáculo “Inclassificáveis” de Ney Matogrosso, um dos meus inérpretes favoritos. Ney tem muitos talentos, e coloca todos eles em palco: cenografia, produção, luz, repertório, direção musical, tudo tem a mão e a personalidade do cantor. Infelizmente, não é possível mostrar tudo o que me impressionou no espetáculo aqui nesta coluna, senão pela indicação do DVD.

Mas acontece de o show ter um discurso muito bem costurado e isso se expressa claramente nas letras das canções escolhidas por Ney. Por esta razão, escolhi dividir algumas com o leitor, precedidas de um pequeno comentário meu. O próprio Ney, nos extras do DVD, define o espetáculo como uma constatação da realidade. Não uma contestação, uma alegoria ou um manifesto, apenas uma  constatação. Este discurso está costurado pela liturgia dramática do intérprete, com direito a brilhos e recursos cênicos de ótimo gosto, além de uma banda competente e equilibrada.

Começamos pela canção que dá nome ao disco e ao show, e que na ordem do espetáculo aparece lá pelo meio, uma letra de Arnaldo Antunes sobre a miscigenação brasileira, um achado nesses tempos de rótulos pretensamente definitivos e totalitários, e que dá o tom do repertório.

Inclassificáveis
Composição : Arnaldo Antunes e Chico Science

“que preto, que branco, que índio o quê? / que branco, que índio, que preto o quê?
que índio, que preto, que branco o quê? / que preto branco índio o quê?
branco índio preto o quê? / índio preto branco o quê? / aqui somos mestiços mulatos
cafuzos pardos mamelucos sararás / crilouros guaranisseis e judárabes
orientupis orientupis / ameriquítalos luso nipo caboclos / orientupis orientupis
iberibárbaros indo ciganagôs / somos o que somos inclassificáveis
não tem um, tem dois, / não tem dois, tem três, / não tem lei, tem leis,
não tem vez, tem vezes, / não tem deus, tem deuses, / não há sol a sós
aqui somos mestiços mulatos / cafuzos pardos tapuias tupinamboclos
americarataís yorubárbaros. / somos o que somos inclassificáveis
que preto, que branco, que índio o quê? / que branco, que índio, que preto o quê?
que índio, que preto, que branco o quê? / não tem um, tem dois,
não tem dois, tem três, / não tem lei, tem leis, / não tem vez, tem vezes,
não tem deus, tem deuses, / não tem cor, tem cores, / não há sol a sós
egipciganos tupinamboclos / yorubárbaros carataís / caribocarijós orientapuias
mamemulatos tropicaburés / chibarrosados mesticigenados
oxigenados debaixo do sol”

No set list do DVD, logo a segunda canção (depois de O Tempo Não Para) é um resgate de um sucesso de Ney no início de sua carreira solo, nos anos 1970. E uma das canções que definiram os rumos de sua trajetória. Gostei da surpresa de sua inclusão neste show.

Mal Necessário
Composição : Mauro Kwitko

“Sou um homem, sou um bicho, sou uma mulher
Sou a mesa e as cadeiras deste cabaré
Sou o seu amor profundo, sou o seu lugar no mundo
Sou a febre que lhe queima mas você não deixa
Sou a sua voz que grita mas você não aceita
O ouvido que lhe escuta quando as vozes se ocultam
Nos bares, nas camas, nos lares, na lama.
Sou o novo, sou o antigo, sou o que não tem tempo
O que sempre esteve vivo, mas nem sempre atento
O que nunca lhe fez falta, o que lhe atormenta e mata
Sou o certo, sou o errado, sou o que divide
O que não tem duas partes, na verdade existe
Oferece a outra face, mas não esquece o que lhe fazem
Nos bares, na lama, nos lares, na cama.
Sou o novo, sou o antigo, sou o que não tem tempo
O que sempre esteve vivo
Sou o certo, sou o errado, sou o que divide
O que não tem duas partes, na verdade existe
Mas não esquece o que lhe fazem
Nos bares, na lama, nos lares, na lama”

A terceira letra selecionada é de uma canção originalmente gravada por Ney já no século XXI, do niteroiense Fred Martins, que tem uma sonoridade árabe-ibérica, um climão pesado e dramático que cabe perfeitamente na voz de Ney Matogrosso e que define dor-de-cotovelo com uma modernidade rara em músicas dor-de-cotovelo.

Novamente
Composição: Fred Martins

“Me disse vai embora, eu não fui / Você não dá valor ao que possui
Enquanto sofre, o coração intui / Que ao mesmo tempo que magoa o tempo
O tempo flui
E assim o sangue corre em cada veia / O vento brinca com os grãos de areia
Poetas cortejando a branca luz / E ao mesmo tempo que machuca
o tempo me passeia
Quem sabe o que se dá em mim? / Quem sabe o que será de nós?
O tempo que antecipa o fim também desata os nós
Quem sabe soletrar adeus sem lágrimas, nenhuma dor
Os pássaros atrás do sol / As dunas de poeira
O céu de anil no pólo sul / A dinamite no paiol / Não há limite no anormal
É que nem sempre o amor é tão azul
A música preenche sua falta / Motivo dessa solidão sem fim
Se alinham pontos negros de nós dois / E arriscam uma fuga contra o tempo
O tempo salta”

A próxima canção é uma prova de que um show pode ter contrastes sem necessariamente perder uma linha, um discurso coerente. A versão de Ney para este sucesso na voz de Luciana Mello é uma releitura poderosa que me fez voltar o DVD e ouvir vezes seguidas. A letra, leve e otimista, encaminha o repertório tenso a um final feliz, antecipando o fechamento carnavalesco que virá a seguir.

Simples Desejo
Composição : Daniel Carlomagno e Jair Oliveira

“Que tal abrir a porta do dia / Entrar sem pedir licença
Sem parar pra pensar, / Pensar em nada…
Legal ficar sorrindo à toa / Sorrir pra qualquer pessoa
Andar sem rumo na rua / Pra viver e pra ver / Não é preciso muito
Atenção, a lição está em cada gesto / Tá no mar, tá no ar
No brilho dos seus olhos / Eu não quero tudo de uma vez
Eu só tenho um simples desejo
Hoje eu só quero que o dia termine bem
Hoje eu só quero que o dia termine muito bem

O show tem três sucessos da dupla Cazuza-Frejat. Na versão do DVD, cabe a “Pro Dia Nascer Feliz” a missão de fechar o assunto de forma positiva, mas sem banalidades, mas com uma prova que a poesia, como a vida, pode ser simples sem ser simplória.

Pro Dia Nascer Feliz
Composição : Cazuza / Frejat

“Todo dia a insônia me convence que o céu faz tudo ficar infinito
E que a solidão é pretensão de quem fica escondido fazendo fita
Todo dia tem a hora da sessão coruja / Só entende quem namora
Agora ‘vão bora’
Estamos meu bem por um triz pro dia nascer feliz
O mundo acordar e a gente dormir, dormir
Pro dia nascer feliz / Essa é a vida que eu quis
O mundo inteiro acordar e a gente dormir
Todo dia é dia e tudo em nome do amor
Essa é a vida que eu quis / Procurando vaga uma hora aqui, a outra ali
No vai-e-vem dos teus quadris / Nadando contra a corrente só pra exercitar
Todo o músculo que sente / Me dê de presente o teu bis
Pro dia nascer feliz / O mundo inteiro acordar e a gente dormir, dormir”

One Reply to “Sobretudo – "Inclassificáveis"”

  1. Muitos tem medo da morte
    E passam a vida morrendo

    O anseio de esquecer é mais forte do que ser
    Quando o ser que tu és lhe desagrada

    A transformação acaba
    quando a estagnação vigora

    E o ser que não se transforma
    Não vive só demora

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