E Osama bin Laden foi para o beleléu. O beleléu, no caso, pode ser o inferno (para muitos), o paraíso (para outros tantos) ou o lugar nenhum (para esse escriba descrente das coisas da alma, pelo menos). A execução de Bin Laden – com todas as controvérsias suscitadas mais sobre os métodos do que propriamente sobre os objetivos da ação – me interessou particularmente sobre o que ela revela acerca do modus operandi e das bases ideológicas que sustentam o mito da identidade nacional dos americanos do norte. Desenvolvo a ideia.
O processo de formação da identidade nacional nos Estados Unidos da América tem como contexto fundamental a expansão territorial do século XIX – a mítica Marcha para o Oeste. Diz Peter Eisenberg (Guerra Civil Americana. 1987. p. 29) que
o Oeste era uma área de fronteira dinâmica, não uma região específica. Em meados do século XVIII o Oeste significava a área entre os montes Apalaches e a margem leste do rio Mississípi(…). Cem anos depois, Oeste veio a indicar a região além do rio Mississípi até o oceano Pacífico. Aos poucos, esse território foi incorporado aos Estados Unidos, através da compra e da conquista.
A base ideológica da conquista de territórios foi a doutrina do destino manifesto, amplamente difundida nos EUA ao longo do sécuo XIX. Dizia a tal doutrina que o povo dos EUA é predestinado por Deus para expandir o seu território e levar, além das fronteiras naturais, os princípios fundadores da nação. A expansão, portanto, era o cumprimento de uma missão divina. O sintetizador da doutrina foi o jornalista John L. O´Sullivan, que a expressou em um famoso ensaio chamado Annexation e em outros textos posteriores. Cito algumas passagens de O´Sullivan:
Nosso “destino manifesto” atribuído pela Providência Divina nos manda cobrir o continente para o livre desenvolvimento de nossa raça que se multiplica aos milhões anualmente(…). esta reivindicação é parte de nosso “destino manifesto” de avançar e possuir todo o continente que a Providência nos concedeu pelo desenvolvimento da grande experiência a nós confiada da liberdade e do auto-governo federalista(…). O Destino Manifesto é um ideal moral superior que se sobrepõe a outras considerações, incluindo leis e acordos internacionais.
Em síntese: o Todo Poderoso deu aos Estados Unidos a tarefa de conquistar territórios além de suas fronteiras. E que se danem as leis se estas se opõem ao tal ideal superior. (Isso está tão arraigado na alma da América profunda que não há como não lembrar de George W. Bush rezando salmos para definir as estratégias de invasão do Afeganistão e do Iraque). Ao difundir a doutrina do destino manifesto como um dos fundamentos da nação, os EUA também vão construir um outro poderoso mito de unidade nacional – a ideia de que o sonho americano de expansão da liberdade é constantemente ameaçado por inimigos externos, contra os quais o povo da América, escolhido por Deus, deve se unir.
Ouso dizer que temos aí boa parte dos fundamentos morais que elucidam as formas de atuação dos Estados Unidos ao longo de sua história. A saga do Oeste explica, em larga medida, a formação de uma mentalidade tipicamente americana, baseada nas ideias de individualismo e pioneirismo, que tem nos desbravadores da fronteira seus personagens modeladores de conduta.
Os inimigos externos, todos aqueles que ameaçam o sonho americano, vão se modificando através dos tempos. De início, os inimigos foram os índios que viviam há milhares de anos nas terras cobiçadas pelos EUA. Um pouco depois a ira expansionista se voltou contra os latino-americanos. Para lidar com os cucarachas, o presidente Ted Roosevelt recomendou, em 1903, a utilização de um porrete grande (big stick) que os obrigasse a reconhecer a liderança dos EUA. Durante boa parte do século XX, pelo menos por uns bons quarenta anos, o inimigo externo foi o comunista (falo, evidentemente, dos tempos da Doutrina Truman, base da atuação dos EUA durante a Guerra Fria). Com a ida da URSS para os cafundós do Judas, o inimigo externo foi redefinido. A ameaça maior ao sonho americano nos dias atuais é o terrorismo. O terrorista é a bola da vez.
Não tenho qualquer simpatia por Osama Bin Laden e estou longe de sofrer da doença infantil do antiamericanismo. O objetivo desse arrazoado é outro. O ponto que me interessa abordar é aquele que, confesso, me chocou particularmente nessa história toda. É constrangedoramente emblemático que a recente operação que terminou com a execução de Bin Laden tenha se referido ao “inimigo número um da América” como Geronimo.
Geronimo, para quem não sabe, foi um chefe apache de meados do século XIX que liderou o combate contra os pioneiros americanos durante a expansão territorial dos Estados Unidos. Foi considerado um “índio renegado” , expressão usada pelo governo dos EUA para definir os apaches que lutaram contra a entrega dos territórios indígenas e o confinamento dos nativos em reservas federais. Há que se considerar que os povos apaches começaram a ocupar as planícies da parte central e do sudoeste da América do Norte por volta do ano de 850 – cerca de mil anos antes, portanto, da doutrina do destino manifesto afirmar que Deus designou aos EUA o direito de conquistar aqueles territórios.
É mais impactante ainda perceber que o presidente dos EUA se vangloriou de ter recebido a mensagem cifrada da execução de Bin Laden com a frase Geronimo morreu em combate. O racismo explícito que marcou a postura dos desbravadores do oeste e dos governos contra os índios apaches revive na operação autorizada pelo presidente negro.
Benjamin Franklin, justamente considerado pelos americanos como um dos pais da nação, se referiu aos apaches em certa ocasião da seguinte maneira:
Se faz parte dos desígnios da Providência extirpar esses selvagens para abrir espaço aos cultivadores da terra, parece-me oportuno que o rum seja o instrumento apropriado. Ele já aniquilou todas as tribos que antes habitavam a costa.
Franklin, em seu puritanismo calvinista, via a eliminação dos apaches como uma tarefa de Deus confiada aos americanos e enxergava na bebida o instrumento ideal para aniquilar os nativos. Obama foi mais longe: eliminou simbolicamente, e o território dos símbolos é o espaço poderoso onde o espírito das nações se insinua, cada índio apache com um tiro na cabeça.
Abraços
Primeiro, parabéns pelo filho, o meu está com quase 3 meses e sei como deve estar sendo suas noites…mas também desconfio do orgulho e felicidade que você deve estar sentindo quando olha pra cara do moleque…
Mas o que eu realmente gostaria de dizer é que aprendo cada vez mais lendo seus textos, é uma pena que não tenha sido seu aluno, um abraço
Rafael
RAFAEL, obrigado. E parabéns também pelo teu moleque. Abraço
Vale lembrar que a ideia de expansão da fronteira estadunidense esteve tão presente ao longo da história que eles a expandiram até a lua(Apollo 11 -1969).
E Obama sublinhou, no final do seu discurso, a vontade divina e a defesa da liberdade e da justiça para todos como fatores fundamentais para que chegassem ao objetivo. Os pilgrim fathers estão contentes!
Abraço, careca!
Simas,
Seus textos são fantásticos. Gosto muito.
Também não caio na infantilidade do antiamericanismo. Tampouco compactuo com as medidas absloutamente questionáveis de dominação do planeta, largamente utilizada pelos americanos do norte.
Engraçado você ter mencionado os inimigos da vez da nação. Dá para captarmos esse espírito por meio da produção cinematográfica. Em tempos idos os inimigos eram os nativos (vide os inúmeros filmes de cowboys), depois os russos (lembra dos filmes do Chuck Norris?) e agora o povo do oriente médio (aquele seriado 24 Horas, por exemplo).
Belo texto!
Abração!