Dia desses estava relembrando, numa mesa com gente malunga, alguns pontos de umbanda e encantaria que marcaram profundamente a infância que vivi e meu gosto musical – forjado ali, no Tempo, onde as coisas se firmam, descansam em algum canto da alma e vez por outra desadormecem.
Cantei, dentre vários, a chamada de encantaria de caboclos boiadeiros Pedrinha Miudinha. Acho que desde que me conheço por gente escuto isso e não me canso. Ultimamente tenho, inclusive, me comovido mais ainda com as curimbas que ouvi menino. Como essa.
(eu e meu irmão, Alexandre, nos tambores da casa de encantaria da minh avó, a mãe Deda de Oxum)
Quase todos à mesa conheciam a música – das gravações de Maria Bethania e do Cordel do Fogo Encantado. Pouquíssimos sabiam, entretanto, que Pedrinha Miudinha (de Aruanda, êh!) é um ponto de fundamento da maior seriedade. É macumba, rapaziada. Quem viu um caboclo do Brasil dançar ao som dessa cantiga sabe que o coro come bonito…
O trecho da letra que me comove demasiadamente é o seguinte: Uma é maior, outra é menor / A miudinha é que nos alumeia… Quer frase mais séria que essa, meu velho? O mistério está na pixototinha, como costumava chamar – as coisas miúdas – a minha avó.
A pedra grande, espalhafatosa, a que ocupa demasiado espaço, é a que impressiona os homens e parece ofuscar tudo a sua volta, na imensidão de seu tamanho. Mas é a miudinha – em geral ignorada – que nos alumeia e concentra o silêncio sábio do mistério e suas respostas mais profundas.
Ela, a miudinha, tempera os tempos, como certa vez disse um caboclo. E se ele assim disse, eu é que não duvido.
E saibam os malungos que levo isso – que eu chamo ludicamente de epistemologia da macumba – muito a sério, por exemplo, no meu ofício. Não faço e não conto, afinal, uma História de líderes marcantes, famosos generais, grandes guerras, batalhas decisivas, sistemas políticos, planos econômicos e que tais. Não alumiam o que almejo e me desencantam por demais.
Prefiro estudar as pedrinhas miúdas – foliões anônimos, bêbados líricos, jogadores de futebol de várzea, clubes pequenos, putas velhas, caminhoneiros, retirantes, devotos, iaôs, ogãs, ajuremados, feirantes, motoristas, capoeiras, jongueiros, pretos velhos, violeiros, cordelistas, mestres de marujada, moças do Cordão Encarnado, meninos descalços, goleiros frangueiros e romances de subúrbio, embalados ao som de uma velha marcha-rancho, triste de marré-de-si, que ninguém mais canta.
É pela aproximação amorosa, pelo ato de acariciar com devoção sagrada – amor, eu diria – as pedrinhas miúdas, que busco alumiar a minha terra e a nossa gente aos meus olhos brasileiros, os únicos que tenho para mirar o mundo e compreender os homens. Dessa forma busco conhecer e, mais do que isso, me reconhecer na aldeia dos meus pais e do meu filho.
Viva os caboclos do Brasil – minhas referências mais profundas para descortinar os mundos – e que eles me guardem sempre – como sempre fizeram.
Aí, Simas: lindos seus escritos, sempre. E tem uma coisa comigo, um achamento que nunca sei se é isso mesmo: a miudinha só alumeia mesmo quem está por ser alumiado, quem não está, continua andando no lajedo grande, talvez nem perceba que há pedrinhas. Beijo
O melhor dos pressupostos teóricos para um historiador: o sangue, a alma de quem conta. Se a história for ciência e se não for, só valerá por isso…
Saravá!
Alma explícitamente brasileira forjada em casa de encantados… então encontramos o inspirado cronista carioca. Asé, Abs.
Excelente Simas!
Não há dúvidas de que as pedrinhas são as mais valiosas.
Abraço.
“Quem manda na mata é Oxossi,
Oxossi é caçador…. Oxossi é caçador…
É de na aruanda auêêê…
É de Aruanda auê, Salve os Caboclos da mata
é de aruanda auê…”
Viva!
Maravilha de texto.