Os mais velhos do terreiro de xambá e encantaria de minha avó, onde cresci, me ensinaram a respeitar árvores floridas, rios largos, pedras miúdas, remansos e ventanias. Há que se considerar a possibilidade da borda do vento ser a morada de algum encantado. Rio é orixá, vento é inquice, maré é vodum, pedra de riacho é encantamento de bugre. Assim aprendi – e não me importa a crença, que tenho pouca – mas me vale o rito, que conforta e desvela o mundo na reinvenção da vida e me permite louvar a ancestralidade.
Existem os encantados e os eguns. Eu convivi, conversei, tomei esporro, fui confortado e aprendi com gente das duas naturezas. Tento alumiar a diferença.
Minha avó, por exemplo, trabalhava com o caboclo Peri, um índio que teve vida terrena, morreu e se transformou numa poderosa entidade, baixando na cabeça dos seus filhos e filhas para dar consultas, sempre esbanjando sabedoria. Dos cantos desse caboclo, meu predileto é o belíssimo ponto de partida, entoado na hora em que Seu Peri deixa a guma para voltar ao invisível:
Adeus Seu Peri, adeus
A sua banda lhe chama
Ele já vai oló
(Ele já vai oló)
Sua macaia, macaiana
Como fica só…
Seu Peri não pode ser considerado um encantado, já que sofreu a morte física. O encantado é aquele que não conheceu a experiência da morte, transformando-se, em vida, num vento, numa rocha, numa praia, numa árvore, numa folha, nas areias do fundo do mar, dos desertos e das serras. Encantou-se ou ajuremou-se, como alguns antigos preferem dizer.
Minha mãe carnal trabalhava com Japetequara (ou Jabetequara, segundo alguns), um exemplo de encantado. Reza a tradição que Japetequara, conhecido também como rei dos índios, foi um turco que chegou ao Brasil no século XVII e encantou-se numa árvore de sucupira, castanha-escura, pesada e resistente, da floresta amazônica. Quando vem na guma dança curvado, como um velho honorável, e é recebido por alguns cantos fabulosos. O meu predileto é o seguinte:
Ainda flora a sucupira
Ainda flora o guerreiro
Ainda flora a sucupira
Ainda flora o guerreiro
Ainda flora a sucupira
Ainda flora a sucupira
Caboclo velho é flecheiro
Ê caboclo velho
Das barras do Ariri
Lagoa grande secou
Todos morreram
Eu não morri!
Enquanto o canto de seu Peri fala em ir oló, termo muito ligado ao conceito de morte física, o canto de Japetequara afirma que ele não morreu, passou a viver ajuremado – encantado – nos folíolos coriáceos e nas flores em panículas do tronco da sucupira velha; vez por outra ele aparece para desfilar sua fidalguia entre o povo da terra.
É por isso, amigos, que não conheço coisa mais bonita que os mistérios do encanto. Enquanto o mundo se consome em um desvario produtivista que enxerga o grande rio – um Orixá! – como um potencial gerador de energia para grandes empreendimentos e restringe a isso o seu papel, eu, com um olhar insistente de menino que cresceu na guma, digo que a coisa estaria muito melhor se todos vissem a natureza com o respeito do povo do tambor.
Como podem derrubar a sucupira amazônica onde vive, ajuremado no encanto, o mestre turco, rei dos índios e caboclo do Brasil, o velho Japetequara, que eu vi dançar pelo corpo de minha mãe? É ele, o índio velho encantador de mundos, que brada quando floresce e abranda de suavidades a dureza do tronco escuro.
Abraços
“Assim aprendi – e não me importa a crença, que tenho pouca – mas me vale o rito, que conforta e desvela o mundo na reinvenção da vida e me permite louvar a ancestralidade.”
Essa visão supera qualquer racionalidade e qualquer crença, magnífico!
Abraço.
Grande mestre, Simas!
Belíssimo texto! Sua visão sobre esse universo místico, e ainda tão vivo na gente da nossa terra, é fascinante!
Lembro, com saudade, das suas aulas na FEUC, tão dinâmicas e enriquecedoras. Tenho orgulho de ter sido sua aluna.
Um grande abraço!
Ivonete.