O código penal brasileiro reconhece o crime ambiental como sendo aquele ato que causa danos à natureza, que é um patrimônio da humanidade. No entanto, esse código se omite em relação ao crime cultural, que, por sua vez, é um ato que causa danos a um patrimônio público. Pode-se citar, como exemplo desse último, a abertura das alas de compositores, a qual extingue, por conseqüência, a ala de compositores tradicional, que é, ou era, o eixo de transmissão de uma escola de samba por onde as suas tradições se mantêm e se renovam ao longo das gerações que se sucedem.
Comumentemente, cada escola – das mais tradicionais às de fundação mais recente – no desdobramento da sua história desenvolve o seu modo próprio de ser, manifesto nos seus componentes – passistas, ritmistas, mestres-sala, portas-bandeira, compositores etc – que é, então cultuado e legado aos seus sucessores pelos sambas de quadra e de enredo.
Na medida em que uma escola de samba substitui a ala de compositores tradicional pela ala de compositores aberta, transforma a ala de compositores de eixo de transmissão cultural num balcão de negócios, onde são cobradas taxas de inscrição na ala pra quem quiser se inscrever concomitantemente com as taxas de inscrição do samba-enredo. Note-se que a disputa este ano numa dessas escolas que adotaram a ala aberta envolveu cerca de 130 sambas enredo. Considerando-se que cada compositor concorrente pagou oitenta reais pela inscrição na ala e oitenta reais pela inscrição do samba, e que cada parceria é composta, em média, por 5 compositores, conclui-se que esse negócio foi altamente rentável para o caixa da escola, em detrimento da perda da sua identidade histórica – conservando apenas o seu nome e as suas cores.
A atual disputa do samba-enredo passou a exigir requisitos que se tornaram fundamentais para o concorrente que tenha pretensões efetivas de vitória: produção do CD em padrão profissional, torcida e palco. Na audição dos CDs já se definem os finalistas e, em muitos casos, até o vencedor [N.do.E.: muitas vezes, até antes da audição. Abafa o caso]. Daí a necessidade de uma produção bem cuidada, o que inclui a escolha de um intérprete à altura do empreendimento.
Conforme a máxima romana que diz que não basta a mulher de César ser honesta, ela também tem que mostrar que é honesta, a realidade é que no quadro presente não basta o samba ser bom, é preciso evidenciar a sua qualidade e a sua supremacia. É aí onde entra a torcida, o que implica em gasto com transporte, bebida e alimentação. Por fim, há o palco, onde é exigida a contratação de especialistas para ocupar os quatro microfones postos à disposição dos sambas concorrentes, além dos músicos.
Encarando-se a disputa do samba-enredo sem hipocrisia, há que se considerar essa disputa como uma produção cultural, similar a um filme, a uma peça de teatro , a um projeto musical, enfim, a qualquer evento artístico – cuja execução só é possível com o apoio de um patrocinador. O alto custo dessa disputa gerou o ‘samba de escritório’, que tem de ser entendido dentro de uma mão dupla, isto é, como conseqüência e como causa.
Como conseqüência, o samba de escritório foi a resposta encontrada por um grupo reduzido de compositores para enfrentar o alto custo da disputa e, paralelamente, ampliar o seu mercado de trabalho. Assim, esse compositores-empresários montaram uma estrutura com recursos patrocinados que lhes permite concorrerem em várias escolas de samba (utilizando a figura do compositor-laranja) baseados na seguinte lógica: se ganharem em três escolas e perderem em duas, o saldo já é positivo. Como causa, o samba de escritório, devido à grande demanda (atende às escolas do Rio de Janeiro e de outros estados) elaborou uma fórmula padrão, engessando, desse modo, a criação do samba-enredo. Além disso, vem contribuindo, predatoriamente, para o esvaziamento e a conseqüente extinção das alas de compositores a médio prazo.
A eficiência dessa estrutura comercial impôs a dinastia do “samba de escritório” e do seu modelo de criação industrial, criando uma nova referência estética de caráter lítero-musical, tanto para o compositor como para o público em geral – atraindo até, em alguns casos, a opinião favorável de alguns dos críticos mais exigentes, em que pese a indiscutível perda da qualidade artesanal. Para justificar esta perda, os adeptos do samba industrial passaram a recorrer a falácias, tomando-as como supostos mandamentos dogmáticos e encobrindo, com discursos pretensamente técnicos, a sua origem apócrifa e artificial.
Passa-se a falar, então, em samba valente – onde as notas graves são banidas, privilegiando as melodias monocórdias e recorrentes – e de samba funcional. Esquece-se que samba enredo é música, música é arte, e a arte é do âmbito da emoção e não da funcionalidade, adjetivo mais pertinente para as máquinas. Decreta-se a obrigatoriedade do refrão, o qual, por sua vez, dizem, tem que ter resposta. Afirma-se que a letra deve descrever o enredo segundo a sequência dos carros alegóricos etc.
Na vigência da dinastia do samba de escritório, enquanto o desfile das escolas atrai cada vez mais a atenção da mídia e do público, firmando-se, indubitavelmente, como o maior espetáculo da terra, o samba enredo paradoxalmente vem perdendo, gradativamente, a sua representatividade, não despertando mais o interesse que antes despertava. Tem-se, então, que o que era um quesito que se destacava como protagonista dentro do desfile transformou-se num mero coadjuvante sem expressão, uma espécie de alegoria de boca, descartada após o desfile e apagada da memória popular.
A Portela vem resistindo às investidas do samba de escritório. O presidente Nilo Figueiredo, coerentemente – em 1973 opôs-se ao samba da dupla Evaldo Gouvêa/Jair Amorim – afiançou a hegemonia da ala de compositores – incontestavelmente, a mais emblemática das alas de compositores, desde Paulo da Portela a Paulinho da Viola e seus contemporâneos de talento consensualmente reconhecido. Declarando-se contrário à participação do samba de escritório nas disputas do samba enredo resguarda as tradições da Portela e permite a sua renovação, indo ao encontro, desse modo, do ideário do Portelaweb e dos Guerreiros da Águia, dois grupos articulados e sem filiações personalistas – que se mobilizam em prol unicamente dos legítimos interesses da agremiação e que surgem como a vanguarda do samba, já que são pioneiros no papel que se propõem representar.
Essa postura do presidente Nilo Figueiredo, que encontra respaldo naqueles que têm compromissos com a cultura de um modo geral e com os valores portelenses em particular, sinaliza que, pelo menos num futuro próximo, a Portela não corre o risco de seguir o mesmo caminho já trilhado por algumas co-irmãs.
Toninho Nascimento – compositor e professor de filosofia
Luíz Carlos Máximo – compositor e jornalista