[ Foto de Reginaldo Manente, prêmio Esso de fotografia em 1982]
Eu achava, simplesmente, que se a seleção ganhasse a Copa a vida seria boa, Deus seria justo e eu, para sempre, feliz.
Ganhar o mundial, todo mundo sabe, é menos prova de competência que a confirmação do destino – e o nosso destino, em 1982, era mesmo levar a taça, confirmando a máxima de que a nêga é minha, ninguém tasca, eu vi primeiro.
Era, além disso , a chance de dizer aos mais velhos, que me matavam de inveja porque tinham visto o escrete papar a Jules Rimet em 1970: eu também vi o Brasil ser campeão do mundo e está provado que a derrota em 1978 não foi minha culpa.
E eu imaginei o gol como nosso destino manifesto e tive um misto de pena e desprezo pelo resto do mundo – a humanidade, sem a camisa canarinho, é um aglomerado de gente esquisita vivendo longe demais da zona do agrião.
E vieram os soviéticos, os escoceses, os neozelandeses e os argentinos… Mole. Não bastasse jogarmos muito mais, Seu Tranca Rua, Seu Peri, Pai Joaquim, Tupã e a Senhora Aparecida torciam pela gente, conforme minha avó me explicara.
E veio a Itália, terra do bisavô Salvatore. Jogo fácil, mera confirmação da supremacia estabelecida nos 4 a 1 de 1970. Os carcamanos, afinal, empataram com o Peru, a Polônia e a República dos Camarões. [Ganharam da Argentina, é vero, mas não eram páreo para o escrete canarinho. Mais quatro? Mera formalidade temperada de arte e redes estufadas. E pode, seu juiz, anular gol feio, que é covardia.]
Eles foram fazendo gols e nós fomos empatando. O primeiro queijo é dos ratos, a primeira esmola é dos pobres e o futebol é que nem o bento que bento é o frade – o seu mestre mandou o Brasil ser campeão, ora bolas. Não obstante, levaremos, todos nós, um bolo.
Acabou.
– Vou encher a cara! Disse meu avô.
Eu também, pensei como neto do velho. Peguei as merrecas da mesada, guardadas com afinco para bancar meu futuro – uma tarde na Rua Alice – e entrei na lanchonete do posto de gasolina pisando forte, feito o destemido pistoleiro num saloon do Velho Oeste. Caixão não tem gaveta; eu vou é torrar o dinheiro todo, já que o mundo não é mais o mundo:
– Eu quero um sundae grande de flocos com calda de chocolate e muita castanha.
A garçonete não falou nada – e estava com a cara inchada, a pobre. Preparou o sundae, colocou no balcão e foi chorar mais um pouco no canto.
Peguei a colher e fui dar primeira mordida. Não consegui. Não, eu não sentia tristeza. Falando sério: eu não sentia, na verdade, coisa nenhuma. Tudo era um desencantamento – e se não faz sentido, eu vou sentir o que?
Fiquei ali bem umas duas horas. O sorvete derreteu todo. Como entrei, saí. Imaginei o estádio escuro, sem ninguém. Um estádio vazio, com os refletores apagados, é desde então a imagem mais triste e abandonada que me ocorre para definir a não-vida. Ausência de tudo, inclusive da morte.
A amiga psicologa da tia-avó disse: – Esse menino está deprimido.
A bola, se falasse, diria: – Esse menino não está.
Será isso a ausência da alma? Não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe. Sou mais chegado nas alegrias.
A merda é que vez por outra, como ontem, eu dou de sonhar com o sorvete derretendo.
E isso tudo porque o senhor nutre um declarado desprezo pelo escrete de 82. Imagina se gostasse dele! Beijo, velhão.
espetacular. explosão em gol.
BRUNO, mano velho, acho que Deus morreu em 1982, no Sarriá… Beijo.
Grande JEAN, valeu!!!
Que troço lindo…
Abraço!
ÓTIMO! Como diria o álbum do campeonato brasileiro de 77 ou 78: “Pré-selecionado”.
Quem morreu no Sarriá foi o futebol bonito. Depois dele só apareceu pernada, correria e jogo feio.
Nunca esqueçi deste dia. A panela de feijoada lá em casa ficou intacta. Todos perderam a fome.
Valeu.
Helvécio
Simão: só agora consegui acessar esse troço de comentar. Textaço, como lhe disse por outros meios. De fazer chorar e reviver, in totum, as emoções que também mexeram comigo, moleque de 13 anos à época. Duro é terminar de ler isso e lembrar que os jornalões chamam Cora Rónai e Bruno Mazzeo pra falarem de futebol. Você nos salva, mano. Beijo grande.
P.S.: acho que preciso de um psiquiatra. Li esse troço e já ouvi o samba do Junior – “voa, canarinho, voa…” – mais de 50 vezes só de ontem pra hoje.
Simas,
Acho que poucas vezes na vida eu chorei tanto.
Eu consigo me lembrar de detalhes minúsculos deste dia: roupas, comida, pessoas, expressões e, principalmente, a dor. Gigante.
A criançada toda reunida na rua enfeitada em Jacarepaguá, pulando e brincando minutos antes do embate.
Eu com o meu inseparável moleton de treino da seleção com os símbolos da Topper e do Café do Brasil (sim, foi bastante vantajoso morar em Teresópolis durante a época da concentração).
Na mochila, meu álbum da Copa do Ping Pong, quase completo.
Meus pais com a camisa do Pacheco, garoto propaganda da Gillete, enchendo o pote já por conta da previsão.
Duas horas depois, aquele silêncio onipresente e onpotente, tal qual o do final do certame de 50. Talvez pior?
Aquele dia foi como o 11 de setembro de 2001: inesquecível, e talvez tenha sido o 11 de setembro do futebol, pois ele nunca mais foi o mesmo. Foi ficando funcional, feio, bronco, monótono… ou pelo menos foi assim que eu passei a vê-lo.
Posso te dizer que 50% da minha paixão por futebol morreu naquele dia. Sei que isso é um sacrilégio, mas o futebol é movido por paixões, e essas, eventualmente, podem acabar gerando uma ferida incurável.
Um fraterno (e melancólico) abraço!
Lembro plenamente desse fatídico dia na altura dos meus oito anos… naquela ocasião percebi que a vida seria difícil…
Sempre dividi a humanidade, ou a brasileiridade, entre os que viram e os que não viram a seleção de 82. Um pouco como os mais velhos, que dividiam a mesma rapaziada entre os que viram e os que não viram a seleção de 70.
Simas, sem favor: antológico.
Eu, nascido em 75, tive em 82 a minha primeira Copa, já “entendendo”, por assim dizer, o mundo em volta. Não esqueço, nunca esqueci, a “familhada” reunida na nossa casa, em São Luís, assistindo a, sabe o quê?, Bélgica x Argentina, todos torcendo desesperadamente pela Bélgica – que ganhou (se não me engano, foi a abertura, mas já não sei). E depois veio a magia profunda ao meu peito de menino, Zico, Júnior, Leandro, Sócrates, Falcão e companhia limitada.
Até Sarriá, quando Deus cochilou… É da vida, é do jogo – mas nunca mais fui tão feliz vendo a seleção brasileira, nem – veja bem – quando ganhamos em 94 e 02 (até porque torcer, torcer mesmo, só pelo Fla). O que vou fazer? Paciência…
Abração!
Simas,
não vivenciei tal episódio da história das copas (assunto sobre o qual me agrada muito aprender contigo), ainda assim confesso que rapidamente fui reportado ao início dos anos 80, e pude sentir um aperto quando li que o Brasil não havia ganhado da Italia. É claro que eu sei que o Brasil perdeu de 3 x 2 – eu e todo o mundo! -, mas você sabe como é isso. Imagino que você também se sinta assim ao ler um bom texto sobre a Copa de 50. Bravo, meu amigo! Bravo!
Um grande abraço,
Cezar Cavaliere.
Linda crônica, Simão. Se ainda desse tempo, iria pedir para incluir na revista!
Saudades de tomar uma gelada com o amigo…
Assim como na casa do Helvécio, lá em casa ficou um cozido inteiro sem ninguém tocar. Quando o jogo acabou, foi cada um saindo pra sua casa, ninguém falava nada……
Mestre, o grande Sócrates nos ensinou muito e esta sua crônica está em sintonia com os principios do velho companheiro, falar das copas campeãs qualquer um faz. Adimirar esta seleção(82) como uma das melhores, que jogou e se entregou de corpo e alma, é virtude. Mas desta vez os deuses não premiaram o conjunto e a Itália tinha o Paolo Rossi, que não sei porque tinha incorporado nas últimas partidas o nosso Mané. Ele nos faz lembrar dos compositores de um único sucesso.
Abraços
Jairo
Socrates, acima de tudo Brasileiro !
Abraço
Edmar Dida.