Eu tinha sete anos naquela ocasião, mas me lembro bem daquele jogo. Vi com meus pais em casa, em Cascadura, onde nasci e fui criado. Recordo-me que antes da partida a Rede Globo transmitiu um filme sobre a Segunda Guerra e campos de concentração chamado “A 25ª Hora”, que reproduzo a sinopse abaixo. O curioso é que o filme é de 1967, mas acredito que tenha sido um dos muitos censurados pela ditadura durante os anos de vigência do AI-5, tema do post de ontem.
“Um romeno e sua mulher são apanhados numa agressão nazista. O chefe do departamento policial, que deseja a mulher, envia o marido para um campo de concentração sob a alegação de que é judeu. Ali começa uma tragicômica saga. A partir de determinado momento do filme, numa demonstração das loucuras e incoerências da era nazista, o homem acaba sendo considerado um exemplar-modelo de ariano (medem seus ossos, nariz, rosto, etc.) e ele acaba por passar toda a guerra sem haver entendido os motivos de tudo aquilo estar lhe acontecendo, nem as razões do conflito mundial.”
Lembro-me também de que perguntei a meu pai se “os jogadores estavam de cabeça para baixo, pois o jogo era no Japão” e se o gol da direita das cabines, onde foram os gols, estava trocado – na verdade seria o da esquerda. Coisas de criança. E de minha mãe torcendo para que Zico fizesse um gol no segundo tempo.
Estas lembranças foram reavivadas pela fantástica iniciativa da Rádio Globo em conjunto com a Olympikus: transmitir exatamente no mesmo horário original da partida – meia noite do dia 13 de dezembro – a narração original do jogo, sem cortes e com os anunciantes da época. A emissora fez a partida com os imortais Waldir Amaral e Jorge Cury na narração, Rui Porto nos comentários e Kleber Leite – esse mesmo que o leitor está pensando, de passagem desastrosa como presidente do clube – como repórter de campo.
Leitores, foi uma viagem no tempo. Naqueles anos não havia esta facilidade de se ver praticamente todos os jogos ao vivo na televisão, então era rádio ligado e “ouvido na latinha”, como se dizia antigamente. Os olhos marejavam e apesar do adiantado do horário era um mundo mágico que estava de volta. A própria transmissão ao vivo pela tv, feita pelo então iniciante na emissora Galvão Bueno e Gérson, não era muito comum – e a partida foi transmitida por ser uma decisão.
Outra faceta sensacional eram os maneirismos e expressões dos saudosos Waldir Amaral e Jorge Curi. Não havia aquela preocupação com o politicamente correto que está deixando tudo “quadrado” e chato nos dias de hoje. A ponto de Curi se referir a Adílio, o craque da camisa 8, como “ah, neguinho bom!” Obviamente era uma expressão carinhosa, mas certamente hoje teria rendido alguns dias na cadeia ao locutor. Azar dos dias de hoje.
Outras expressões bem legais eram usadas pelos narradores, como “as pernas do Adílio estão ficando brancas” (para se referir ao frio) de Jorge Curi e “estão dando tanto de trivela que irão torcer o tornozelo”, de Kleber Leite. Os comerciais também eram diferentes. Chega a ser engraçado ver o “rádio 3 em 1″ da Sanyo (rádio, toca fitas e toca discos) anunciado como ” a última novidade em tecnologia”, ou os anúncios dos relógios Mondaine – muitos que acompanhavam a transmissão no Twitter expressaram desejo de comprar um destes após ouvirem os reclames.
Ou seja, trinta anos depois as marcas que anunciaram naquela ocasião (Mondaine, Ponto Frio, Sanyo, Loteria Esportiva e Adidas) tem os seus nomes lembrados e devem ter este recall refletido em vendas. Também deve se elogiar a postura da Olympikus, que não vetou o fato da Adidas ser uma das patrocinadoras originais da partida e bancou a transmissão.
Ressalte-se também a emoção de Jorge Curi, rubro negro doente, ao terminar de narrar o primeiro tempo e passar o comando a Amaral. Com voz embargada, é uma verdadeira profissão de fé no jornalismo esportivo e no Flamengo. Só este momento valeria a transmissão. Curi morreria no final de 1985, em um acidente de carro próximo a Caxambu, onde iria passar as festas de Natal e Ano Novo.
Sem dúvida alguma, a noite de terça feira última foi um marco do jornalismo esportivo brasileiro, que pode ter aberto um novo filão: a retransmissão de jogos históricos. Gilmar Ferreira, diretor da Rádio Globo, anunciou no Twitter que em 2012 haverá algo parecido com o primeiro título mundial do São Paulo, na voz de Osmar Santos. Acho muito justo.
O mesmo Gilmar havia prometido que disponibilizaria para download a íntegra, mas no momento em que escrevo – final da tarde de terça feira – podia-se apenas ouvir a partida no site da rádio. Mas já existem vários links para downloads deste momento histórico.
Foi uma noite de festa.
“Será que você lembra como eu lembro o Mundial, que o Zico foi buscar…”