Excepcionalmente nesta quinta feira, mais uma edição da coluna “Bissexta”, do advogado Walter Monteiro. Hoje, atendendo a uma demanda minha, ele escreve sobre algo que é uma verdadeira aberração: o sistema de cartórios brasileiro.

Todo mês pelo menos uma ou duas vezes tenho de reconhecer minha firma em documentos da empresa da minha esposa, por questões legais. Além de ser distante de onde trabalho, a morosidade com que sou atendido é de irritar qualquer religioso – e ainda tenho de aturar o atendente, seja qual for, me olhando de cima a baixo como se estivesse me fazendo um favor. Dose.

Vamos ao texto do colunista.

Uma Aberração Chamada Cartório

Está se aproximando o dia em que vou ter que procurar emprego, porque o Editor Chefe segue em campanha para aumentar meu círculo de inimizades no meu setor, a advocacia.

Primeiro me fez falar mal dos salários do Judiciário, atraindo a ira dos oficiais de justiça, que não param de me perseguir e só vem ao Ouro de Tolo para destilar seu ódio contra mim. Ainda bem que o blog não publica a minha foto, caso contrário imagino que só poderia entrar no Fórum disfarçado [N.do.E.: mal sabe ele que quase publiquei a foto dos colunistas no post de Natal (risos)].

Agora me encomenda uma coluna com esse título alegre, que certamente aumentará a simpatia dos amigos tabeliães em relação a mim.

Quero até fazer justiça com os Oficiais da referida coluna. Eu tinha dito que o melhor emprego do mundo era o deles, mas eu estava errado. O melhor emprego do mundo é ser dono de cartório no Brasil. A única vez que vi alguém pedir aposentadoria da magistratura antecipadamente foi um ex-professor meu, que desperdiçou a chance de ser desembargador para virar dono de cartório.

Meu amigo e colega de blog, Affonso Romero, escreveu aqui mesmo no Ouro de Tolo que o presidente ideal do Flamengo, dentre outros atributos, precisa ser alguém rico o suficiente para não precisar trabalhar. É inevitável lembrar-se do presidente rubro-negro que conquistou os seis títulos nacionais.

Qual era a profissão de Marcio Braga? Dono de cartório. E o que ele fez para ser alçado a essa condição? Casou-se com a sobrinha de Juscelino Kubistchek. O cartório, que o fez milionário, que lhe deu a chance de se dedicar (com méritos) a sua verdadeira paixão e vocação, foi um presente de casamento para um então jovem de 23 anos.

Concursos públicos para chefiar cartórios são uma novidade recente no Brasil. Até a década de 90 os cartórios eram doados pelo governo a quem eles bem entendessem e eram como capitanias hereditárias: passavam de pai para filho. Na década retrasada começaram os concursos.

Mas foi só em 2009 que o Conselho Nacional de Justiça – CNJ (olha ele aí de novo) determinou que os atuais tabeliães que sejam donos de cartório e que não tenham feito concurso abandonem os respectivos postos. O que, diga-se de passagem, ainda não aconteceu, porque a briga ainda persiste na Justiça e, até onde eu saiba, praticamente ninguém perdeu o seu negócio. Desculpem-me, mas “negócio” me parece a palavra mais apropriada para algo tão rentável.

E porque o negócio é tão bom?

Porque há uma série de atos que a lei obriga que sejam feitos de forma pública, como registros de nascimento e casamento, compra e venda de imóveis, reconhecimento de autenticidade em documentos, etc. No Brasil, desde os tempos imperiais, se optou para que esses atos fossem praticados em uma entidade chamada “cartório”.

Isso não precisaria ser necessariamente assim. É claro que a atividade notarial é uma exigência da segurança jurídica da sociedade, mas há outros modelos, menos concentradores de poder e riqueza. Há países em que, a exemplo de um colégio de advogados ou de médicos, há um colégio de notários. Quem quer exercer essa profissão se submete aos requisitos impostos por esse colégio (normalmente uma prova) e, uma vez admitido, ganha a licença para trabalhar.

De posse da licença, o profissional pode:

a) ser contratado por uma empresa que tenha necessidade de praticar muitos atos de caráter público (praticamente toda grande empresa requer um fluxo imenso de documentos autenticados);
b) abrir um pequeno escritório e exercer a atividade de modo autônomo;
c) unir-se a outros colegas e abrir uma grande empresa de serviços notariais, algo semelhante aos nossos cartórios.

O modelo brasileiro, embora em evolução, dada a recentíssima necessidade de concurso público e que, ressalte-se, ainda não foi consolidada, privilegia muito mais a atividade notarial como um negócio. Ótimo negócio,  quase sem riscos, com uma clientela cativa, preços tabelados, baixa ou nenhuma concorrência. Utilizado, até bem pouco tempo, como uma moeda de troca infalível para cortejar apaniguados.

Será que um dia evoluiremos para democratizar a atividade, eliminar os cartórios, trocando-os por milhares de profissionais dedicados ao mesmo serviço e assim baratear os custos das transações legais?

Oremos, oremos.

4 Replies to “Bissexta – "Uma Aberração Chamada Cartório"”

  1. O texto não é burro, preconceituoso e estúpido – como em regra são as críticas dirigidas a cartórios.
    É bem informado.
    Acrescentaria, a título de ilustração, que os concursos públicos para cartório são muito antigos no Brasil – desde o Império. O problema é a administração pública que não realiza, como deveria, os tais concursos.
    Depois, os cartórios, na tradição do direito europeu continental, são muito mais antigos. Os primeiros regulamentos sobre notários (tabeliones) são justinianeus, séc. V.
    Por fim, sou registrador em SP e inigressei por concurso público. Minha mãe era empregada doméstica e meu pai eletricista, o que prova que o negócio não vem de pai para filho.
    No mais, Márcio Braga é um grande… presidente do Flamengo.

  2. Caro Sergio,

    Obrigado pelo comentário. Eu tenho esperanças que a questão dos cartórios irá melhorar bastante em alguns anos, quando todos os titulares forem nomeados por concurso. Concursos públicos democratizam o acesso, como o seu belo exemplo pessoal prova.

    Para meu gosto pessoal, a atividade notarial seria mais eficaz se controlada através de um colégio/conselho, sendo uma profissão liberal. Mas reconheço que cartórios não são uma exclusividade brasileira. E estamos avançando, felizmente.

    Walter Monteiro

  3. Sugiro ao autor do artigo que veja o “antes e depois” dos cartorios nos poucos Estados que realizaram concursos abrangendo todos seus territorios: Sao Paulo e Santa Catarina.
    O verdadeiro caminho para o melhor atendimento dos intersses da sociedade eh o concurso publico.
    Mas os velhos apadrinhados estao quase aprovando uma Emenda Constitucional com um Trem da Alegria efetivando-os na maior cara de pau.
    Trata-se da PEC 471 (poderia ser chamada de 171) agendada para aprovacao em fevereiro.

Comments are closed.