Nesta semana de carnaval retomo um tema sempre palpitante no debate entre os aficcionados, mas pouco visto pelo grande público: a administração, em geral, das escolas de samba.

Para o apreciador “normal” – que ouve os sambas, assiste pela tv ou ainda desfila, mas não vive o dia o dia – a única face visível desta questão são os enredos patrocinados e as súplicas dos presidentes das escolas por mais verbas públicas. Entretanto, há uma série de questões que estão ocultas e que necessitam ser debatidas e analisadas de forma clara.

O primeiro ponto que abordo é a questão do patrocínio. O que se observa hoje é uma relação de “compra e venda” bastante simples: as empresas injetam recursos na escola e em troca se tornam o enredo da agremiação. Mal comparando, é como se a Devassa, por exemplo, patrocinasse uma peça de teatro e como contrapartida exigisse que o tema fosse a própria cerveja, ou cervejaria.

É exatamente desta forma que ocorre hoje em nossas escolas. Para 2012 somente no Grupo Especial temos Vila Isabel com Angola, a Beija Flor com o Maranhão, Imperatriz com Bahia/Jorge Amado, a São Clemente com os musicais (embora este seja um pouco diferente), a União da Ilha com Londres e o insólito enredo do iogurte no Porto da Pedra. Ainda temos a Portela que adaptou um enredo autoral para permitir o patrocínio do Governo da Bahia.

Ou seja, entre treze escolas temos seis com enredos assumidamente patrocinados e mais uma que adaptou seu enredo a fim de permitir a entrada de recursos. Entretanto, duas perguntas se impõem: o patrocínio é realmente necessário ? O modelo atual é correto ?

Quanto à primeira pergunta, eu tenderia a responder que não. As escolas de samba do Grupo Especial, o Olimpo do samba, dispõem de aproximadamente R$ 6 milhões para não somente realizar seu carnaval quanto honrar suas despesas de custeio. Neste valor estão inclusos cerca de R$ 1 milhão da subvenção da prefeitura do Rio de Janeiro, mais R$ 1 milhão do governo do Estado e um valor variável – de acordo com o ranking da Liesa – de em média R$ 4 milhões referentes a direitos de arena, venda de Cds, ingressos da Passarela do Samba e recursos referentes à transmissão televisiva.

Ainda houve excepcionalmente este ano um desembolso da Petrobras da ordem de mais R$ 1 milhão para cada escola. Ou seja, R$ 7 milhões no total.

Para o leitor ter uma idéia, um carnaval campeão como o do Salgueiro em 2009 gastou aproximadamente R$ 4 milhões (dados da diretoria da escola), isto com os carros alegóricos extremamente caprichados e caros que a escola apresentou naquele ano. Uma escola do Acesso B como era o Boi da Ilha em 2008/09 – anos em que fui Diretor de Planejamento da escola insulana – gastava cerca de R$ 350 mil para colocar o carnaval na rua, incluindo todas as despesas.

Por mais que haja uma diferença abissal entre a primeira e a terceira divisões do samba, não chega às vinte vezes que escolas “ricas” alegam – afirmando que precisam de pelo menos R$ 8 milhões para fazer seu desfile. Desconfie quando ouvir isso na imprensa, caro leitor.

Além disso, as agremiações do Grupo Especial possuem um potencial de alavancagem de recursos desprezado: programas de sócio torcedor, contratos de fornecimento de camisas e licenciamento de produtos com a marca da escola, shows, eventos e mesmo uma melhor rentabilização de suas quadras de ensaios.

Eu me lembro que fiz uma conta rápida utilizando a Portela como exemplo e cheguei ao valor estimado de R$ 600 mil/ano com um programa de sócio torcedor (a R$ 10/mês) e mais uns R$ 500 mil/ano com contratos de fornecimento de camisas e licenciamento de produtos. Esta é uma conta rasteira e muito, mas muito subdimensionada.

Marcas como a Portela e a Mangueira, por exemplo, a meu juízo são menos fortes apenas no Rio de Janeiro que Flamengo e Vasco. O potencial de recursos é inimaginável. Mas…

Outro ponto muitas vezes desconhecido é o contrato de grandes escolas com cervejarias. Sei de um caso real, onde a empresa pagava há dois anos R$ 1 milhão/ano para a escola e ainda fornecia sem custo toda a cerveja vendida nos ensaios. Ou seja, são mais R$ 2 milhões aproximadamente que esta agremiação tem garantidos todo ano. Cheguei a ver uma minuta de contrato destas em uma ocasião.

Pelo lado das despesas, parece claro que há muito o que se ganhar em termos de eficiência em gestão administrativa e financeira. Não há controles orçamentários estritos e muitas vezes a contabilidade ainda é na base do “papel de pão”.

Com um bom planejamento pode-se antecipar compras de materiais e iniciar-se serviços de ferragem, carpintaria e ateliê antecipadamente, diminuindo o custo de mão de obra. Por mais que os recursos “oficiais” não sejam entregues antecipadamente, um bom planejamento somado à busca por outras fontes de recursos pode diminuir de forma significativa o valor gasto para se colocar o carnaval na rua. Entretanto o que se sabe é que praticamente todas as escolas sequer tem orçamentos estruturados, mesmo que de forma rudimentar.

Em um modelo de gestão estruturado neste momento em que estamos já se deveria estar planejando o carnaval 2013, desde pelo menos dezembro do ano passado, no máximo janeiro. O enredo já deveria estar definido e o carnavalesco já trabalhando nos desenhos, de forma a no máximo em abril se iniciar a compra de material.

Entretanto, não se está nem perto disso – embora a pressão de patrocinadores faça com que escolas como a Mocidade e a Portela já tenham enredos definidos para 2013, ainda que só pensem efetivamente na execução deles lá para maio.

Sobre o modelo de patrocínio, este atual onde se vende “a peça”, ou seja, o desfile, é algo absolutamente anômalo. O regulamento dos desfiles dificulta um pouco as coisas ao não permitir o merchandising explícito, mas existem formas de se obter patrocínios institucionais com retorno de imagem e sem interferir na porção cultural da festa – que pode e deve ser priorizada.

Ainda temos a questão da detentora dos direitos televisivos, que interfere no evento e na transmissão de forma a não fazer propaganda explícita – haja visto o episódio ocorrido em 2010 com a escola paulistana “Rosas de Ouro”, que teve de mudar seu samba, e com a Grande Rio com seu abre-alas – que fazia referência ao camarote da Brahma – que foi simplesmente boicotado na transmissão. Mesmo este ano a Porto da Pedra alterou a letra do samba vencedor após a disputa, que continha uma referência indireta à Danone.

Evidente que a Globo responde por parte significativa da receita das escolas e tem de resguardar os direitos de seus patrocinadores, no que está correta. Mas penso que se poderia se negociar uma solução intermediária, no sentido de que pelo menos antes de cada escola pudesse ser citado o nome dos patrocinadores institucionais no sistema de som da Passarela.

Aliás, fazendo-se um parêntese, muito por causa das próprias escolas a emissora não trabalha o produto que tem. A transmissão está pior a cada ano, as escolas ficam “escondidas” na divulgação da emissora e mesmo programas como o “Esquenta” (um programa de samba sem sambistas, mas esta é outra história) na semana de carnaval tratam os sambistas das escolas como figurantes.

Além de um trabalho conjunto de valorização do produto, talvez fosse viável uma transmissão segmentada em um dos canais fechados do grupo, ou até mesmo um Pay per View envolvendo as escolas de Acesso junto ao Grupo Especial. Mas este não é nosso foco hoje.

Temos outra questão delicada envolvendo a gestão das escolas, que é a sua profissionalização pela metade.
O desfile vem tomando uma dimensão e vindo em um caminho onde se encontra em um dúbio meio termo: as administrações são profissionais quando se trata de exigir seus recursos, mas absolutamente amadoras no que toca às obrigações financeiras e a relação com os artistas do espetáculo. Atrasos nos pagamentos e a falta de uma relação trabalhista formalizada são a praxe; normalmente, quando há, são contratos de prestação de serviços com validade de um ano, mas o normal é a relação trabalhista “no fio do bigode”, totalmente informal e que desrespeita os direitos trabalhistas mais básicos.

Levando-se em conta que encontrar trabalhadores com carteira assinada é raro, isso dá ao presidente ou patrono da instituição um poder de mando sobre o funcionário absolutamente desequilibrado. A informalidade é a regra e calotes, muito comuns. Outro problema é a verdadeira escravidão a que se submetem nos dias de hoje os integrantes de baterias de grandes escolas, que ensaiam cinco, seis noites por semana sem nada além de bebida e, no máximo, um sanduíche. O que deveria ser uma arte, uma diversão, virou profissão não remunerada.

Outro ponto a se comentar é que as condições de trabalho nos considerados modernos barracões da Cidade do Samba poderiam ser melhores em relação à segurança do trabalho. Falta também conscientização – não é raro se ver pessoas fumando dentro dos barracões, repleto de materiais inflamáveis.

Também não podemos deixar de mencionar que as prestações de contas referentes à subvenção – parcelas do governo do Estado e da Prefeitura – levam todo o jeito de serem algo absolutamente fictício. Reproduzi aqui excelente material de pesquisa publicado pelo jornal O Globo logo após o carnaval de 2010 – em brilhante trabalho do jornalista Aloy Jupiara – demonstrando as incoerências de tais prestações, com sérias suspeitas de lavagem de dinheiro e evasão fiscal.

Aliás, para 2011 e neste ano o Ministério Público quis impedir as escolas do Grupo Especial de receber a subvenção da prefeitura, mas esta e a Liesa (organizadora) encontraram uma engenhosa saída: o “Viradão do Momo”, série de eventos ocorrida nas escolas e que por sua realização cada uma delas recebeu R$ 1 milhão – sem a necessidade de prestar contas. Contudo, o Ministério Público está questionando este repasse.

Finalizando este texto cabe realçar a absoluta ausência de democracia nas escolas. Praticamente todas as escolas do grupo principal ou são feudos (de uma pessoa ou família) ou simulacros de democracia, onde só há troca de comando quando o dono se enche da brincadeira e vai embora para casa.

A solitária exceção neste quadro, a princípio, seria o Salgueiro, assim mesmo com certa boa vontade: notícias publicadas na imprensa dão conta de que pode haver luta pelo poder a partir de métodos “pouco ortodoxos” em um futuro breve.

Não raro estes mandatários são figuras com extensas folhas corridas ou sobre os quais recaem suspeitas e indiciamentos. Note-se que o Patrono da Beija Flor Anísio Abraão David (foto que abre o post) está preso em Bangu I e os presidentes da Imperatriz Leopoldinense e da Grande Rio encontram-se foragidos no momento em que escrevo estas linhas.

Contudo, parece que o Poder Público e outros atores importantes no processo começam a se sentir incomodados com esta convivência, digamos, “inusitada”: percebem-se aqui e ali declarações – em especial do Prefeito – neste sentido. O modelo de poder exercido pela Liesa, se não esgotado, começa a dar sinais de fraturas, o que me leva a pensar que poderemos ter mudanças na estrutura de poder em um futuro não muito distante.

Este modelo organizacional das escolas acaba gerando aquele que é um dos principais problemas das agremiações hoje: a falta de transparência. Este é um artigo absolutamente em falta e sem previsão de chegada nas agremiações.

Aliás, se me perguntarem qual o maior problema das nossas escolas de samba hoje diria que se resume a uma palavra: GOVERNANÇA. Falta um modelo estruturado às escolas, que inclua controles internos adequados, um modelo de gestão adequado e regras que não permitam aos mandatários tratarem as agremiações como extensões de seus próprios poderes pessoais.

Talvez falte ao samba uma espécie de “Lei Sarbannes-Oxley”, legislação americana aprovada após os escândalos da Enron e outros e que instituiu princípios de governança corporativa para as empresas. Algumas corporações brasileiras, como a Petrobras, tem de seguir esta lei por terem ações na Bolsa de Valores de New York.

Mas algo neste sentido para nossas escolas – e, também, para os clubes de futebol – não tem a menor chance de sair de dentro das agremiações ou da Liesa. Teria de ser via Poder Público.

Não esgoto aqui o tema. Mas há muito a que se caminhar neste processo, seja no marketing, seja na gestão, seja na governança.

(Fotos: UOL e O Globo)