Eis aí, na íntegra, o meu texto publicado originalmente em O Globo, edição do dia 18 de fevereiro de 2012.
Se algum dia alguém resolvesse escrever uma versão brasileira do Dom Quixote, não tenho dúvidas de que o cavaleiro da triste figura deveria ser representado pelo folião do Bloco do Eu Sozinho. É isso mesmo: o Quixote brasileiro é aquele sujeito que vestiu a fantasia e saiu às ruas no carnaval rigorosamente solitário ou, no máximo, na companhia de desajeitados escudeiros catados à sorrelfa em alguma esquina.
Esse folião está em vias de se extinguir, engolido pelas multidões coreografadas, submerso em materiais de propaganda de empresas que patrocinam a folia e atropelado por caminhões de som com amplificadores potentes. Não bastasse isso, se o solitário folião consegue um espaço para erguer o seu estandarte e sair cantando a Jardineira, é capaz de ser abordado por um fiscal da prefeitura em busca do alvará que lhe conceda a licença para cair na gandaia.
Sempre fui defensor de uma ideia que não tem lá muitos adeptos: os maiores foliões são os tristes. O tríduo não foi feito para os festeiros escancarados, os baianos de ocasião, as polianas desvairadas do sonho bom, os colecionadores de abadás. O legítimo folião não programa o carnaval; sabe apenas que vai para a rua imolar-se nos blocos e cordões e morrer até a quarta-feira de cinzas, quando ressuscitará como burocrata, marido, esposa, professor ou escriturário, para o longo e medíocre intervalo cotidiano entre um carnaval e outro.
A ideia de se transformar o carnaval de rua em uma eterna micareta no balneário dos grandes eventos – e os conseqüentes dilemas que envolvem as relações entre o poder público e as agremiações carnavalescas – envolve o risco de matar o folião espontâneo, comandante de uma armada de piratas, colombinas, índios, faraós e árabes que vão se juntando sem trajeto definido, horário de partida ou de chegada.
Durante a Primeira República, o governo resolveu alterar a data do Carnaval de 1912, em virtude do falecimento do barão do Rio Branco. Quando correu a notícia de que o velho tinha batido a caçoleta, foi determinado que a festa de Momo se realizasse apenas no sábado de Aleluia. Resultado: os anônimos foliões foram saindo às ruas de mansinho e, quando se percebeu, o fuzuê estava formado antes mesmo que o cadáver do barão esfriasse na sepultura. O povão batia bumbos e cantava uma quadrinha que se espalhou pela cidade: “Com a morte do Barão/ Teremos dois carnavá/Ai que bom, ai que gostoso/ Se morresse o marechá”. O marechal em questão era simplesmente o presidente Hermes da Fonseca. Não conheço momento mais emblemático na história do carnaval carioca.
O verdadeiro folião – espremido entre a cruz (a multidão organizada) e a espada (o alvará que não possui) – sabe que a experiência carnavalesca é uma pequena morte. Durante os dias de Momo, a máscara prevalece e todas as inversões sociais são urgentes e necessárias. O esquecimento é a essência da folia. A espontaneidade é o seu mote. É direito de todo carnavalesco zombar pacificamente dos barões e marechais da vez – e isso deve lhe ser garantido pelos próprios barões e marechais.
Que cada um dos consagrados na Ordem de Momo tenha, pacificamente, a liberdade de se esbaldar. É possível?
Evoé!
Bravíssimo, mestre!