Em edição extra, a coluna “Bissexta” de hoje, assinada pelo advogado Walter Monteiro, retoma um tema sobre o qual o próprio colunista escreveu tempos atrás e que foi tema de uma reportagem no mínimo insólita do site “G1” semana passada: a mudança do perfil das babás.

Digo que a reportagem é insólita porque a matéria traz algumas declarações inacreditáveis de patroas, na linha do preconceito puro. É um bom retrato de quão abjeta nossa elite pode ser.

A Revolução das Babás

Eu tinha uma adega para climatizar vinhos. Uma frescura, do tempo em que eu achava o máximo gastar uma pequena fortuna em doses de 750 ml. Ela sempre ficou na sala, uma exibição tola para os que me visitavam e me ajudavam a derreter centenas de reais em líquidos caros. A minha mulher sempre implicou com aquele monstrengo negro com termômetro digital, resolvi transferi-lo para nossa casa em Canela, para não atrapalhar o engatinhar de nossas filhas gêmeas.

O que já era tolo tornou-se então inútil. Para que serve uma adega climatizadora quando a temperatura ambiente é semelhante, senão mais baixa? Meu vizinho de condomínio me convidou para visitar a casa dele depois da reforma, estava todo orgulhoso de uma adega em madeira que tinha mandado fazer, que mesclava nichos para armazenar os vinhos e gavetas para acondicionar as cervejas – porque, como bem sabe o Editor Chefe, cerveja está na moda, não pega bem deixá-las misturadas com sacos de arroz na despensa. Fiquei com muita inveja, chamei o marceneiro, mandei copiar.

Quando ficou pronta, aí mesmo é que a adega climatizadora se tornou um fardo na minha sala. Queria me livrar dela correndo, olhei para a babá das minhas filhas e perguntei: você quer essa adega para você?

Ela quis.

Uma adega de vinhos para uma babá? E desde quando uma babá toma vinhos à temperatura ideal?

Se o leitor está se fazendo essas perguntas é porque não tem filhos pequenos. As babás desses anos 10 são muito, mas muito diferentes mesmo de todo o estereótipo ao redor dos serviços domésticos a que nos acostumamos.

Como temos duas filhas gêmeas de um ano, compromissos profissionais bem sérios e nenhum parente a menos de 1.500 km de distância, nós simplesmente não conseguimos viver sem babás. Temos um time de três babás e nos submetemos à vontade soberana delas.

A principal, que trabalha durante a semana, faz um gênero mais convencional: é uma senhora, avó de três netos, sem muitas perspectivas na vida além do serviço doméstico. Chega segunda feira pela manhã, vai embora quarta às 18 horas, volta na quinta à tarde, sai sexta-feira às 18h. Tem carteira assinada, ganha mais que os advogados iniciantes do meu escritório. Nas 4as feiras e finais de semana, entram as suas substitutas. Uma delas, uma futura colega minha, uma estudante de direito, que de 2ª a 6ª trabalha em um escritório de advocacia.

E a outra, a que herdou a adega, é um caso à parte.

Logo que ela foi contratada eu a surpreendi no notebook enquanto minhas filhas dormiam. Não era o meu notebook: era o dela, por sinal mais novo que o meu.  Perguntei se ela queria a senha do wi-fi. Ela disse que não precisava, estava apenas revisando uns relatórios da escola onde trabalha no horário comercial – não resisti e dei uma bisbilhotada de leve, realmente eram umas planilhas em Excel.

Descobri que ela é formada em pedagogia pela Universidad Católica do Chile (onde, suponho, adquiriu o gosto por vinhos bons). E que a filha, de 19 anos, estuda na PUC de Porto Alegre, a faculdade mais cara da cidade.

E eu não via a hora de me livrar da adega: trouxe de Canela na mala do carro, aproveitando que o carrinho das bebês não estava ali. Perguntei se ela queria que eu entregasse na casa dela à noite, ela agradeceu, porque desconfiava que a encomenda não caberia na mala do carro dela – carro dela? Eu nem sabia que ela vinha trabalhar de carro. Imaginei que fosse um carro velhinho.

Eu, acostumado com prestadores de serviço que moram longe, morri de medo dela morar no ‘caixa prego’, mas o endereço era de um bairro de classe média, a 15 minutos da minha casa. Coincidiu de eu chegar lá quase junto com ela: vi que ela tinha um Peugeot 207, relativamente novo, morava em um dos melhores edifícios da rua. Chamou o porteiro para carregar a adega para a casa dela e se despediu.

Eu li na Internet uma extensa reportagem de patroas se queixando do que chamaram de “crise das babás”, a mesma a qual o Editor Chefe se referiu na introdução desta coluna. A presidente do sindicato delas rebateu lembrando que babá não falta, o que anda em falta é escravo.

Está certa a ilustre sindicalista. Hoje, se o leitor quiser ter uma babá, esteja preparado: vai custar caríssimo e a relação com ela vai ser muito diferente do padrão “patroa-empregada”, pois o nível cultural das babás é elevado, o padrão de consumo é semelhante ao dos donos da casa e a atividade se tornou uma alternativa para gente instruída que quer simplesmente ganhar mais do que se paga em empregos convencionais.

No fundo eu ainda preciso me dar por satisfeito por morar em Porto Alegre. Mês passado recebi uma visita de uma advogada de São Paulo, cuja irmã tinha acabado de ter filhos gêmeos. A família estava apavorada, porque para cuidar de gêmeos em tempo integral, só encontravam enfermeiras que cobravam de R$ 5 mil para cima. A mãe decidiu largar o emprego até que os bebês possam adquirir uma certa independência, lá pelos 5 ou 6 anos.

O ritmo, amigos, mudou.