De volta após intervalo, a coluna “Sobretudo”, do publicitário Affonso Romero, fala também da novela Avenida Brasil a partir das características do autor do folhetim, João Emanuel Carneiro.
As novelas, a inveja e a dissimulação
Como já diz o bordão, “a inveja é uma m…”.
Pior que a inveja é a dissimulação da inveja. Eu assumo a minha: como escreve rápido meu companheiro de blog Walter Monteiro!
Eu tenho boa aututoestima de texto, mas sou um misto de lerdo e preguiçoso para escrever. O Walter não: ele está em um minuto “conversando” por email conosco sobre um assunto qualquer, de maneira descontraída e quase sempre superficial e, no minuto seguinte, se sai com uma coluna prontinha, com uma bordagem adequada do tema. Sempre com uma visão distinta, na profundidade certa, texto enxuto e direto.
E aí eu vejo que o meu processo criativo é sofrido, espremido. Perco as desculpas, porque o Walter é ainda mais ocupado do que eu, estamos dividindo – e o Editor Chefe ajudando – os desgastes de uma campanha político-clubística e, ainda por cima, ele também acompanha a novela das 21h00. Ou seja, eu não escrevo no mesmo ritmo frenético porque sou lento mesmo.
Inveja e dissimulação, aliás, são dois artifícios recorrentes em novelas, e eu vou aproveitar e pegar uma carona no texto do Walter. “Avenida Brasil” realmente é um sucesso; e a maior parte dele vem da boa utilização destes temas pelo seu autor, João Emanuel Carneiro.
João, aos 42 anos, é ainda jovem no universo batido dos autores de novelas. Domina a técnica do folhetim eletrônico, mas vai incorporando novidades, parte delas inovações de estilo pessoal, parte delas reflexo das mudanças no perfil do público.
Sua carreira na Globo, de pouco mais de dez anos, iniciou-se como colaborador de Maria Adelaide Amaral nas excelentes minisséries de época “A Muralha” e “Os Maias”. As séries e mininovelas são uma grande oportunidade de aprendizado porque reúnem as formidáveis condições técnicas desenvolvidas pela teledramaturgia comercial brasileira, o nível excepcional de atuação e direção, os recursos estruturais e financeiros da superprodução. Por outro lado as cobranças de audiência são menos rigorosas, dado que estas obras são programadas para horários menos competitivos. Isso abre espaço para que se possa ousar um pouco mais e fugir dos lugares-comuns do modelo folhetinesco.
Entretanto, quando jogaram Emanuel aos humores do grande público, sua primeira novela como autor titular, “Da Cor do Pecado” (2004), com supervisão de outro craque – Silvio de Abreu – teve média de 43 pontos no Ibope, recorde do horário neste século e marca digna de novela das 21h00. De quebra, fez Taís Araújo emplacar a primeira protagonista negra da história das novelas brasileiras.
Tamanho sucesso o credenciou em 2006 a tentar recuperar o share do horário, desgastado pelo fracasso da desastrada “Bang-Bang” (inovadora demais, mas na direção errada), de Mario Prata. Esta última coincidiu com a evolução da Record no ramo, capitaneada por Tiago Santiago, outro inovador. Pois “Cobras e Lagartos” emplacou uma média de 39 pontos, só perdendo para a marca de “Da Cor…”. Novamente, os núcleos “pobre” e “rico” da trama se misturavam com naturalidade, tipos físicos característicos da população comum enriqueciam sem perder seus modos e costumes. Ao contrário, o comportamento novo-rico era objeto de comédia, do ridículo.
Desde suas primeiras obras, na faixa das 19h00, João Emanuel espelhava um Brasil que começou, neste século, e se reconhecer como um país ascendente, sem abrir mão de suas características e contradições. O brasileiro médio deixou de recorrer às novelas como uma vitrine dos hábitos de uma classe superior, uma forma de macaquear e invejar uma riqueza distante. Passou a ter objetivos de consumo bem mais mensuráveis, acessíveis, realizáveis. E quis ver isso na telinha.
João foi o autor que melhor identificou e traduziu isso, de modo que suas novelas trabalham o tema da inveja com um novo enfoque. E o público gosta.
“Avenida Brasil” já é o seu segundo sucesso no horário das 21h00, no qual o autor estreou com “A Favorita” (2008). Nas duas tramas, há um confronto entre duas personagens femininas que se alternam na vilania, movidas seja por malvadeza ou necessidade de vingança/justiça.
Assim como Carminha é humanizada por sua fragilidade, apesar de vilã, Nina/Rita é, apesar de mocinha, mal comportada, capaz de crueldades e manipulações – coisa impensável numa novela de até uma década atrás. O mesmo jogo de espelhos era protagonizado por Cláudia Raia e Patrícia Pilar (Donatela e Flora) em “A Favorita”. Dissimulação, portanto, passa a ser um artifício de vilãs e mocinhas, indistintamente, deixando as novelas de João Emanuel distantes da tradição maniqueista do folhetim clássico.
Esta proximidade da ambivalência observada na vida real traz nuances ainda mais sintonizadas com o hiperrealismo já anteriormente presente na proposta de atuação e na estrutura técnica (cenários, figurinos, ambientação, som, imagem etc.) das novelas brasileiras – padrão que foi perseguido pela Globo por mais de 40 anos, e copiado pelas demais emissoras. Muito diferente dos dramalhões latino americanos e das sitcoms norte-americanas, estas últimas focadas na caricatura da realidade.
Como foi muito bem definido aqui pelo Walter, o folhetim está para a cultura assim como o hambúrguer está para a gastronomia. Normalmente, eu chego do trabalho bastante tarde. Da mesma forma que eu faço uma refeição leve, normalmente um lanche, desacelero a mente vendo a vida dos personagens passar pela tela.
Quanto mais aquilo me parecer banal, natural, cotidiano – com a honrosa exceção do humor caricatural e despretensioso – menos reflexiva será a minha atitude em frente à tela. A novela não requer minha atenção exclusiva, minha compenetração. Ao contrário, sua reprodução da vida cotidiana, em tons mais ou menos carregados, me lembra de assuntos igualmente comuns, permitem o diálogo familiar livre, leve e solto.
Continuo sem compreender quem assiste às novelas com fervor religioso, gente que não pode assumir compromissos no horário das 21h00, de segunda a sábado, para quem não se pode fazer uma ligação telefônica, nem falar pessoalmente. Para mim, novela segue sendo aquela coisa que a gente deixa passar na tevê enquanto o sono não vem.
E as novelas do João Emanuel são perfeitas para isso.
Excelente coluna, futuro presidente! SRN.