Excepcionalmente nesta terça feira, a coluna “Made in USA”, do advogado Rafael Rafic, conta a enorme confusão ocorrida no início da temporada do futebol americano com a utilização de árbitros de várzea para suas partidas.
Paguem as Zebras
A Made in USA não poderia passar ao largo da polêmica que tomou conta das três primeiras semanas iniciais da temporada de futebol americano e hoje aborda mais uma trapalhada do comissário da NFL (algo próximo a um presidente), Roger Godell: a greve dos árbitros.
Os árbitros, assim como os jogadores, tem suas relações com a liga regidas por um contrato, profissional. O último contrato da associação de árbitros da NFL iria até o fim da temporada 2011-2012.
Como já se imaginava que seria uma negociação complicada, os árbitros estavam planejando usar uma cláusula contratual que possibilitaria a abertura de negociações um ano antes – ganhando tempo para se chegar a um acordo e evitar problemas.
Porém essa cláusula tornou-se inócua por causa da greve dos jogadores antes do início da temporada passada, que cancelou a negociação antecipada.
Eis que Roger Godell dá de novo o ar de sua (des)graça. Uma administração responsável e conciliadora de uma liga tão grande e que gira tanto dinheiro não se arriscaria fortemente por causa de uma causa tão pequena.
Parêntese: estamos falando de gastos em torno de US$4 milhões anuais para uma liga que ganha US$ 9 bilhões por ano. Mal comparando, é como se brigar por uma torneira no quarto de empregada de uma mansão de 30 quartos e 20 suítes.
Qualquer administrador sensato e conciliador, como Bud Selig (MLB, baseball), faria um contrato paliativo nos mesmos moldes do atual por um tempo curto (dois ou três anos). Assim se teria tempo de negociar pontos mais polêmicos de forma duradoura sem o risco de greve e lockout.
Mas Godell – e sua sanha por brigas sangrentas e desnecessárias – estressou a negociação com pontos extremamente polêmicos, como a mudança imediata do plano de aposentadoria (para um mais arriscado) para todos os árbitros, o aumento do número de equipes de juízes (o que representa redução de ganhos individuais) e a adoção de árbitros exclusivos da NFL por todo o ano sem a devida compensação. Atualmente os árbitros só ficam a disposição da NFL de agosto até o Superbowl.
Obviamente a associação chiou e o acordo não saiu.
Até que em julho/agosto, ficou claro que Godell adotou a estratégia de tentar esmagar os árbitros. Travou de vez a negociação e começou a contratar os “replacement umpires” (árbitros substitutos) numa tentativa de intimidar a associação e mostrar que os árbitros não eram tão necessários para o jogo como eles imaginavam.
Esses árbitros substitutos, de modo geral, vieram de ligas universitárias de futebol americano, que tem regras bastante diferentes da NFL. Além das regras diferentes, eles tem muito menos experiência e não estão acostumados com a repercussão e a importância dos jogos da liga principal. Mas o principal é que eles não tinham o menor respeito dos jogadores e técnicos.
[N.do.E.: mal comparando, seria como se trouxessem árbitros do campeonato de pelada dos porteiros do Aterro para apitar o Brasileirão.]
Traduzindo: a estratégia era ineficiente e tinha tudo para dar errado. E deu!
Nas duas primeiras semanas de jogo, foram vários lances polêmicos e várias lambanças da arbitragem em lances até fáceis, mas que na regra do futebol universitário seriam diferentes. Isso sem contar as milhares de faltas marcadas e não-marcadas erroneamente e a confusão total quando se tratava de desafios eletrônicos (inexistente nas ligas universitárias menores).
[N.do.E.: sem contar casos onde um árbitro foi retirado da partida pois era torcedor de uma das equipes e outro onde o juiz virou para um jogador e disse que esperava que ele fosse bem pois o tinha escalado em seu time de fantasy.]
Apesar dos vários erros, nada alterou o resultado de jogos. Houve apenas técnicos e jogadores ficando malucos com algumas decisões ridículas de árbitros e alguns casos de mal-estar, como no jogo de domingo à noite, transmitido nacionalmente em TV aberta.
Naquela ocasião a torcida de Baltimore começou a gritar em altíssimo som “Bullshit” após uma marcação errada no fim do jogo que poderia mudar o resultado da partida. Por sorte, deu tudo certo e o resultado não foi afetado.
Isso em inglês é um senhor insulto e, a exceção de jogos entre Yankees x Red Sox no baseball (um caso à parte de 90 anos de altíssima rivalidade, histórica e esportiva), em 10 anos de esportes americanos eu nunca tinha ouvido uma torcida americana xingar quem quer que seja, ainda mais os árbitros.
A torcida gritou tão forte que a TV não conseguiu esconder isso dos microfones, e tanto a transmissão americana quanto a brasileira não puderam ignorar, sendo obrigadas a comentar o incidente.
Alias, no Brasil a ESPN até criou uma hashtag para promover o fim da greve que fez relativo sucesso: a #paguemaszebras. “Zebras” é o apelido dos árbitros da NFL, que usam um uniforme listrado em preto e branco, bastante parecido com a pele do referido animal. [N.do.E.: ou com a camisa do Botafogo, o que, na prática, dá no mesmo.]
Porém era inevitável que uma grande besteira iria ocorrer mais cedo ou mais tarde e ela ocorreu na terceira semana, no jogo de 2ª feira à noite que encerra a rodada. Partida esta transmitida em rede nacional de TV fechada, mas de grande penetração (ESPN) entre Green Bay Packers e Seattle Seahawks.
Última jogada da partida. Packers ganhando por cinco pontos com o Seahawks no ataque. O Seahawks tenta um longo passe para o fim do campo, o “touchdown”, que daria seis pontos (mais o direito a um ou dois pontos extras, mas não vem ao caso).
O problema é que tanto defensor quanto atacante agarraram a bola e não largaram. Resultado: tinham dois árbitros na jogada, um marcou o touchdown e o outro, na mesma hora, marcou interceptação, quando o defensor pega a bola. O vídeo está na abertura do post.
A jogada em tempo real é mesmo polêmica. Para isso, a NFL tem o desafio eletrônico, que permite aos árbitros olharem todos os ângulos captados para a TV em câmera lenta. Obviamente eles foram ver o replay.
Olhando o replay lateral (que também é transmitido no sinal da TV) é claro e evidente que o defensor do Packers teve controle da bola bem antes do atacante e a marcação correta nesse caso seria a interceptação e a vitória do Packers.
Além disso, antes da jogada houve uma falta de ataque não-marcada que invalidaria a jogada. Mas como faltas não são passíveis de verificação por replay, isso não foi revisto.
Foi uma surpresa quando os árbitros voltaram da cabine e mantiveram a chamada oficial de campo: touchdown.
A revolta foi generalizada. Houve gritaria enorme na imprensa reclamando que os “replacement” não poderiam ser deixados arbitrar jogos da NFL. Os jogadores reclamaram demais e chegaram até a ameaçar uma greve enquanto os árbitros oficiais não voltassem, e até o presidente Obama resolveu falar sobre o assunto: pediu nas entrelinhas pelo Twitter que “pelo amor de Deus, entrem em um acordo rápido porque ninguém agüenta mais os replacement”.
Inclusive um jogador do Packers soltou dois twitts desafiadores logo após o jogo. Em tradução bem livre foi assim: “Fui fodido pelos árbitros. Constrangedor. Obrigado NFL” e “Toma no cu, NFL. Multem-me e utilizem o meu dinheiro para pagar os árbitros”.
Coincidência ou não, na 4ª feira seguinte (semana passada) a NFL decidiu negociar e chegou em um acordo com os árbitros no memso dia. Não foi o acordo dos sonhos para nenhum dos lados, mas como em uma negociação, ficou em um meio termo.
Segundo o chefe das negociações pela parte dos árbitros o acordo feito foi exatamente o proposto desde abril e que Godell simplesmente não aceitava por pirraça ou ganância.
O acordo seria aprovado oficialmente só no fim de semana (e o foi por 116 votos a favor, só cinco foram contra) mas a comoção foi tão grande que Godell aceitou que os árbitros já voltassem, mesmo sem acordo oficialmente assinado, para o jogo de 5ª feira passada.
Os árbitros foram loucamente aplaudidos na 5ª feira quando entraram em campo, assim como em vários outros jogos durante o final de semana.
[N.do.E.: eu vi esta partida. Nunca imaginei que viveria para ver árbitros sendo aplaudidos da forma que foram.]
É impressionante como a inabilidade e a falta de vontade de Godell transformou trapalhões natos (os árbitros da NFL atualmente estão longe de serem bons e também tem cometido erros bisonhos) em heróis de forma bastante rápida.
Mais impressionante é tentar entender como um comissário tão ruim como Godell – que causou sozinho três ou quatro enormes confusões na NFL nos últimos três anos de forma desnecessária – é tido por 10 entre 10 “entendidos” de gestão esportiva como um dos maiores profissionais da área.
Se eu não dissesse que era de futebol americano, creio que vários leitores deste blog imaginariam de se tratar de algo no Brasil.
Simplesmente inacreditável!
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