(Este texto, com pequenas alterações, foi publicado originalmente no domingo do Círio de 2010)
Não sou um homem de fé, sou homem de ritos. Minha crença é uma opção pelo encantamento do mundo e só compreendo a devoção quando ela se manifesta em reza, festa, dança, batuque, comida e camaradagem. Meus deuses são manifestações do olhar da poesia sobre o mundo que me cerca.
A ciência vê no fogo a oxidação de um material combustível que libera calor, luz e produtos da reação, tais como o dióxido de carbono. A poesia dos homens, na Mãe África, viu no fogo a força de Xangô, Nzazi e Hevioso. Eu acredito na verdade da ciência, mas me emociono com o canto e a dança. Por isso, diante do fogo, bato cabeça para Xangô e venero no rito a poesia do mundo, o encantamento dos homens e a celebração do mistério que já não há.
Escrevi certa feita que a razão, quando vê a natureza, produz ciência. A poesia, quando faz a mesma coisa, vê os deuses e orixás. A mirada da arte começa onde a ciência não consegue contemplar a aspiração dos homens pelo que não é tangível – e esses olhares, para mim, absolutamente não se excluem. Eu não acredito em deuses, mas creio nos homens que rezam e, deste modo, se integram ao todo – o conjunto de deuses sem Deus – que algum acaso provavelmente produziu.
É exatamente por isso, como homem sem fé grávido de ritos, que me comovo com a celebração do Círio de Nazaré, nesse segundo domingo de outubro, em Belém do Pará – e também, em proporção mais modesta, mas nem por isso menos comovente, aqui no Rio, quando a comunidade paraense fecha a Rua Haddock Lobo, na minha Tijuca, para louvar a santa.
Me emociona a história de um certo Plácido, caboclo ribeirinho, que em mil e setecentos achou, à beira do igarapé Murucutu, uma pequena imagem de Nossa Senhora de Nazaré. Plácido cuidou da imagem, bastante desgastada pelo tempo, e montou um modesto altar em sua casa. Diz o povo que a imagem voltou, misteriosamente, ao local onde tinha sido encontrada algumas vezes. A santinha queria mesmo ficar no igarapé.
O caboclo Plácido viu na volta da santa um sinal divino e, por isso, ergueu uma ermida à beira do Murucutu. O povo simples, sabendo do milagre da volta da imagem, passou a visitar a ermida e reverenciar Nossa Senhora. A festa do Círio de Nazaré, até hoje, reproduz o misterioso retorno da santinha ao local onde fora encontrada.
Se me falta a fé, me sobra o apreço pelos ritos do povo. O Círio, ao longo dos tempos, se transformou em vigorosa celebração da vida em comunidade. Comidas, cantos, louvores, brinquedos, leilões, namoros, cheiros e licores bordam a festança daquilo que constitui, para mim, o verdadeiro sentimento religioso do Brasil – afeto celebrado em festa e recriação, pelo rito, da miudeza provisória da vida.
É esse Brasil ritualizado que, temo, pode estar se perdendo em meio ao desencantamento trazido pela intolerância dos fundamentalismos de tantos que, ao louvar a Deus, celebram na verdade a supremacia do mercado, a ascensão do indivíduo como máquina de consumo e a morte da coletividade. Soam tristemente, feito berrantes que chamam o gado triste, as trombetas que tangem o povo para os currais eleitorais de uma fé não ritualizada e desprovida da capacidade de reinventar os mundos.
O meu Brasil é o do Círio do Nazaré. É, mais ainda, o do Círio reinventado, na fé do batuque, pela força do samba – ritual profano do povo e celebração do apreço entre as gentes em suas aspirações de beleza.
Abraços!