Neste domingo, a coluna “Orun Ayé”, do compositor Aloísio Villar, conta um pouco da experiência do colunista quando viveu no interior do Mato Grosso na década de 90.
Uma viagem ao interior do país
Duas coisas ocorreram de domingo para cá que me fizeram ter a idéia de escrever essa coluna agora. Desde fevereiro estou pra escrever esse texto, mas sempre pintava algum assunto e deixava pra lá, mas com esses dois acontecimentos vi que é a hora certa.
A primeira foi a vitória no Boi da Ilha domingo passado. A minha sexta vitória na agremiação, que me garantiu a honraria de ser o segundo compositor de mais vitórias na escola que é o maior celeiro de talentos do bairro. O Boi já foi casa de compositores do quilate de Didi, Aroldo Melodia, João Sergio, Bujão, J.Brito, Carlinhos Fuzil, Mauricio 100 e Marquinhus do Banjo, entre outros.
Além dessas seis vitórias tenho três conquistas em sambas de terreiro, um estandarte de ouro, um troféu Jorge Lafond e um Prêmio S@mba-Net mostrando meu valor como compositor.
Outro fator ocorre nesse instante, onde vejo a Globonews esperando o discurso de Barack Obama reeleito presidente dos Estados Unidos (a coluna foi escrita na noite da última quarta feira). Vendo as nuances eleitorais americanas, todo o seu diferencial sobre o qual falei por alto em coluna retrasada e o Rafael Rafic abordou brilhantemente em duas colunas (inclusive acertando o resultado final). 
Samba? Política? Endoidou Aloisio? Fumou maconha? O que isso tem a ver com essa coluna?
Tem a ver que virei compositor e entrei para a política vinte anos atrás, quase ao mesmo tempo e no mesmo lugar. Barra dos Bugres.
O que é Barra dos Bugres? Explico, ou melhor, a Wikipédia explica.
É um município brasileiro do estado de Mato Grosso. Localiza-se a 15º04’21” de latitude sul e a 57º10’52” de longitude oeste e está a 171 m de altitude. Possui uma área de 7.186,78 km² e sua população estimada em 2007 é de 32.479 habitantes.
Situa-se a 150 quilômetros da capital Cuiabá, no encontro entre o rio Bugres e o rio Paraguai e seu nome deriva da barra formada pelo rio Bugres ao desaguar no rio Paraguai. O mais importante evento da cidade é o Festival Regional de Pesca de Barra do Bugres (FestBugres), e que em 2011 se transformou em FIP – Festival Internacional de Pesca, atraindo turistas de outros estados e de outros países como Estados Unidos, Colômbia, Peru, entre outros.
No município está situado o Campus Universitário Deputado Renê Barbour, da Universidade do Estado do Mato Grosso (UNEMAT), que conta com cinco cursos de graduação (Arquitetura e Urbanismo, Ciência da Computação, Engenharia de Alimentos, Engenharia de Produção Agroindustrial e Matemática).
Possui também uma turma especial de Direito e ainda conta com o Projeto 3º Grau Indígena – Primeiro da América Latina: Formação Superior de Professores Indígenas. E lá fui parar em fevereiro de 1992.
Uma amiga de minha tia fez prova para ser juíza no Mato Grosso e passou, acabou que nessa minha mãe virou secretária dela e paramos lá.
Eu, carioca acostumado com megalópole, trânsito, modernidade, parei numa cidade onde aos domingos a luz era cortada por motivo de economia.
Barra dos Bugres tem uma população do tamanho de meu bairro e quando digo meu bairro não é a Ilha do Governador: é meu bairro dentro da Ilha. O choque foi muito grande, mas aos poucos fui usando aquilo a meu favor.
No Mato Grosso terminei um processo que começara fazendo teatro na escola dois anos antes. O de me soltar, ser menos tímido. Virei celebridade na cidade por ser carioca e até RG tive que mostrar a fim de provar onde nasci.
O fato de a cidade ser pequena, todos se conhecerem e ir a pé a todos os cantos me fez interagir mais. Eu sempre fui um cara calado, introvertido, caseiro e lá conheci a noite, festas, baladas: características que seguiram por minha vida e fiz amigos por toda existência.
Aos poucos o carioca que tomou um choque cultural foi gostando da cidade de uma forma que não queria mais voltar ao Rio de Janeiro. Ali me conheci, alcancei a liberdade e conheci essas duas características de minha vida que citei no início da coluna.
Lá em Barra dos Bugres pela primeira vez concorri em algo como compositor. A escola que eu estudava decidiu criar um hino e deu essa incumbência aos alunos. Eu sempre gostei de escrever e vi ali pela primeira vez a chance de escrever pra outras pessoas verem.
E enquanto todos preferiram um ritmo mais de raiz, mais a ver com a cidade eu fiz um samba, o primeiro da minha vida.
Aprendi duas lições importantes nesse concurso.
A primeira é que hino em ritmo de samba só serve para clube de futebol e mesmo assim feito por Lamartine Babo.
A segunda e a mais importante: logo depois do resultado um professor chegou a mim e disse que eu tinha a melhor letra do concurso, mas não podia cantar de forma alguma.
Sem ter ninguém pra cantar eu subi ao palco e defendi o meu samba. Eram nove músicas inscritas e os fdps fizeram questão de anunciar do nono ao primeiro e dar placas pela participação.
Fiquei em nono.
Minha apresentação foi um desastre. Realmente não sou nenhum Frank Sinatra, mas consegui ser pior do que sou normalmente tentando cantar samba com um garoto de cabelo “Chitãozinho & Xororó” tentando me acompanhar no teclado em ritmo sertanejo. Quando fui anunciado em nono lugar fiquei com vergonha e não queria receber a placa. Mas foram atrás de mim e me convenceram a entrar no salão e injuriado agradecer por ter ficado em último.
Graças a Deus não lembro mais a letra e não preciso postar aqui. Mentira, lembro sim, mas não postarei. Tenho um nome a zelar.
O concurso foi ganho por um grupo chamado “Os filhos do sapateiro”, o mesmo grupo do garoto com cabelo “Chitãozinho & Xororó” e por dois anos tive que irritado ouvir esse hino todas as manhãs e nos eventos festivos.
Nunca mais ouvi falar nos “Filhos do Sapateiro”. Eu decidi continuar escrevendo e compus 92 sambas de enredo chegando a 57 finais, 28 vitórias e ganhando cinco prêmios, três no carnaval carioca e dois no de Cabo Frio. Chupem, “sapateirinhos” (risos).
Mas queria ter ganhado aquele concurso.
Lá aprendi a perder e ganhar. Com uma semana de aulas tal era o frenesi por ser do Rio que ganhei eleição para representante de turma. Algum tempo depois virei presidente do Grêmio Estudantil e da Entidade Municipal de Estudantes.
Criamos a carteirinha estudantil na cidade que dava direito a meia entrada em shows, boates e fizemos convênio com o comércio que dava descontos na apresentação da carteirinha.
Fizemos festas, arrecadamos dinheiro, eventos esportivos, briguei a beça com direção da escola, com turmas que não quiseram respeitar a lei da meia entrada em seu baile pra formatura. Me filiei a partido político e trabalhei nas eleições de 1994.
Lá vi um pouco da “podridão humana”. Vi gente que falava uma coisa e agia de outro modo, vi roubalheira em apuração, o voto de cabresto, o coronelismo. De cédulas com votos dados por semi-analfabetos, que como “por milagre” alguns entendiam e contavam como voto para o coronel local se eleger deputado estadual. Alguns desses votos só com a primeira letra de seu nome e já entendiam que era para o coronel.
Impressionante!!
Conheci a prática de entregar uma cédula para o pobre eleitor já com o nome escrito. Ele entrava, pegava a cédula em branco do mesário, botava na urna o voto marcado anteriormente e entregava pros “capangas” do coronel a cédula em branco dada pelo mesário.
Claro que ele se elegeu deputado e muitas vezes. Copiando a wikipédia pra cá vi que ele virou nome de Campus, procurei mais no google e descobri que ele morrera, vi reportagem da época com outros políticos lamentando e lhe chamando de “reserva moral”.
Que essa “reserva moral” esteja no colo do Capeta.
Apesar dessas coisas Barra dos Bugres é formada por gente de bem, batalhadora, onde vivi momentos inesquecíveis. Minha primeira vez foi lá, uma das paixões mais fortes também, também foi no Mato Grosso que trabalhei pela primeira vez abrindo um fliperama com minha mãe, me formei no segundo grau em magistério e tive que explicar pra crianças de oito, nove anos a morte de Ayrton Senna num dia 2 de maio de 1994.
Nadei no rio, andava tranqüilamente de madrugada pela rua, terminava minhas noites num forró que só tinha velhos e começava a manhã na padaria. Fui muito feliz.
[N.do.E.: tenho de admitir que estou rindo horrores aqui enquanto edito a coluna imaginando o colunista nadando em rio…]
Mas uma hora teria que ir embora. Infelizmente na época a cidade não permitia crescimento. Acabava o segundo grau e ao jovem adulto não restava outra coisa a não ser se casar, ter filhos e receber um parco salário até o fim da vida.
E também lá minha mãe foi violentada depois que fechou um bar nosso, por uma figura conhecida da cidade. Nada aconteceu com o cara por receber proteção dos dominantes locais. Ele não só foi protegido como nós que achamos prudente ir embora para que não houvesse nada a mais contra ela, além das ameaças que já recebia.
Não há provas, mas a hepatite que virou cirrose e matou minha mãe pode ter vindo da cidade, dos banhos de rio ou do estupro. Soube um tempo depois que o tal cara virou evangélico e depois que estava doente. Não desejo mal a ninguém, mas que esteja no colinho do capeta junto com o coronel.
Apesar dos pesares tenho muitas saudades de Barra dos Bugres e de vez em quando sonho com a cidade, como na última noite e os sonhos nunca são ruins.
O adulto Aloisio Villar foi formado lá com todas as suas características. O boêmio, sambista, politizado e que não é mais tão tímido e consegue se ambientar em circunstâncias diferentes a que está acostumado.
Vinte anos se passaram, muita coisa mudou, mas devo muito a Barra dos Bugres e ela também deve a mim.
Um dia volto à cidade e essa dívida é paga.
Mas sem que eu precise cantar… Orun Ayé!