Nesta sexta a coluna “Cinecasulofilia”, do professor, cineasta e crítico Marcelo Ikeda, traça um panorama do denominado “novo” cinema brasileiro.

Renovação no cinema brasileiro atual

É possível afirmar que 2010 foi um ano paradigmático num movimento de renovação de um cinema brasileiro.

Podemos escolher dois acontecimentos-chave que simbolizaram esse momento: o primeiro, logo no início do ano, e o segundo, já em seu final: a exibição de A Alegria e a premiação de O Céu Sobre os Ombros nos Festivais de Cannes e de Brasília, respectivamente. Essas premiações – mais do que meramente legitimar o valor ou a importância dos filmes – funcionaram para dar visibilidade a uma produção que agora recebe destaque mas que na verdade possui uma trajetória muito anterior aos prêmios, que ainda permanece subterrânea, desconhecida.

Se os festivais e a crítica brasileiros começam a reconhecer o amadurecimento dessa cena, é importante destacar que esse movimento de renovação do cinema brasileiro não está começando agora, mas que na verdade esses são os frutos de um processo que dura pelo menos dez anos. Nesse sentido, é importante observar como esse novo caminho pode ser visto numa complementaridade entre dois pontos: uma nova forma de produção e novas possibilidades de difusão.

De um lado, essa nova geração encontrou novas possibilidades de expressão com as tecnologias digitais. Cada vez mais, tornava-se possível realizar um bom filme com meios praticamente amadores. No entanto, esses videos produzidos não conseguiam ser exibidos nos festivais de cinema do Brasil, que, no início deste século, ainda privilegiavam obras em 35mm.

Estas, para serem produzidas, eram muito custosas, dependendo, portanto, dos editais públicos para sua realização. Isso configurava um circuito de produção e circulação: obras em 35mm que circulavam nos festivais, e que, para poderem existir, precisavam ganhar editais, ou seja, obras pré-formatadas. Não é que essa configuração também não tenha gerado grandes curtas e apontado para grandes realizadores, mas tornava mais restritas as possibilidades de expressão audiovisual.

Do mesmo modo, para chegar ao seu primeiro longa-metragem, era preciso que o realizador tivesse formado um “currículo”, ganhando diversos prêmios com seu curta 35mm nos principais festivais de cinema do país, conquistado a simpatia de uma empresa produtora, para que inscrevesse seu projeto de longa nos poucos editais federais que abriam possibilidades para estreantes, notadamente o da Petrobrás e o de Baixo Orçamento do MinC – especialmente este último.

No entanto, a cada edição do “BO” eram contemplados apenas quatro ou cinco projetos, e a demanda era muito grande, havendo ainda uma necessidade de divisão por regiões e a eterna política de atender aos gostos singulares dos jurados de cada comissão. Assim, grandes realizadores, mesmo com inúmeras premiações nos festivais de cinema no país, demoraram dez anos (ou mais) para realizarem seu primeiro longa. Entre eles, podemos citar Gustavo Spolidoro, Paulo Halm, Phillipe Barcinski, Kleber Mendonça Filho, ou outros como Eduardo Nunes e Camilo Cavalcanti, cujos primeiros longas contemplados pelo BO ainda não estão concluídos.

Ou seja, uma transformação da tecnologia (ou da técnica) despertava novas possibilidades, mostrando um novo modo de produção, abandonando a dependência de um certo modelo de financiamento, e apontando a necessidade de uma nova forma de circulação dessas obras.

O circuito fechado começava a se abrir, a se ampliar para novas perspectivas. Uma série de videos – baratos, radicais, marginais – começava a ser produzido nos cinco cantos do país, mas não conseguia circular. Não é à toa que nesse momento houve uma profusão da criação de cineclubes.

O cineclube era essencialmente um ponto de encontro dessa nova geração, que trocava ideias, fumaças, afetos, exibia seus filmes e pensamentos, e conhecia outras pessoas para juntos realizarem novos projetos. Ou seja, os cineclubes geravam encontros, que geraram trocas, racionais e sentimentais, que geraram mais filmes, e mais encontros e mais trocas, de modo que esse circuito foi ganhando uma força inesperada, que crescia de forma orgânica.

Surgia uma curiosidade em tocar os limites de algo que não se sabia muito bem o que era, mas surgia essencialmente de uma insatisfação diante de um embolorado rumo das coisas e de uma necessidade de colocar para fora uma nova visão de mundo: por isso, eram filmes confusos, estranhos, de descoberta, que misturavam bitolas (do Super-8 ao VHS) e referências (do pop ao punk, da vida das ruas ao “intelectualismo acadêmico”, de Debord ao sexo explícito da Boca), num grande caldo de raiva e desejo, insatisfação e maravilhamento.

Essa era a forma política possível de uma geração mostrar a sua cara, uma forma política diferente dos debates da “identidade cultural de um país” lá dos anos sessenta, mas, no início deste novo século, parecia ser a forma possível de falar do mundo. Um olhar precário, confuso, difuso, entediado, mas de alguma forma era um olhar que mostrava uma pulsão diante das novas possibilidades de encontro que o audiovisual vinha possibilitando.

Nesse contexto, começaram a surgir mostras e festivais de cinema que davam espaço para as novas obras audiovisuais que eram produzidas nesse novo contexto e que não conseguiam abrigo nos mais tradicionais festivais de cinema do país, ainda voltados para uma outra lógica de circulação, os “grandes e importantes curtas com uma estrutura de produção”.

Esses festivais, com uma lógica mais tradicional, carregaram consigo o longínquo fardo da necessidade de corroboração de um processo de “retomada do cinema brasileiro” que, mesmo com todas as iniciativas governamentais, centradas nas leis de incentivo, continuava patinando na necessidade de ocupação de um mercado dominado pelo produto hegemônico estrangeiro. Por isso, caía na doce de ilusão de tentar mostrar que o cinema nacional era “forte” e  “bem feito”.Avenida-Brasília-Formosa-Fábio-filmando-videobook-de-Débora-divulgacãoo-foto-Rachel-Ellis

Mas havia um outro cinema que acreditava na precariedade como potência e via no processo, e não necessariamente no produto final, um dos pontos-chave de uma nova forma de produção, menos hierarquizada e mais flexível, dialogando com o documentário e com a videoarte, que via uma relação de cumplicidade entre o cinema e o mundo, entre a criação e a vida.

Ao longo desses dez anos, essa geração “tomou corpo”, fortaleceu-se, diversificou seu processo criativo, amadureceu: de modo que hoje é possível afirmar que constitui uma nova cena, ou ainda, uma nova geração. Dos primeiros curtas-metragens em vídeo, foi crescendo a certeza de que também era possível fazer longas-metragens com o mesmo espírito criativo, com o mesmo modo de produção.

O tabu do “primeiro longa” foi reduzido: nos últimos anos, um conjunto de longas-metragens foi produzido ou sem nenhuma grana estatal ou com orçamentos menores que R$200 mil. Entre eles podemos citar: Estrada Para Ythaca e Os Monstros (Guto Parente, Luiz e Ricardo Pretti, e Pedro Diógenes), A Fuga da Mulher Gorila (Felipe Bragança e Marina Meliande), Meu Nome é Dindi (Bruno Safadi), Sábado à Noite (Ivo Lopes Araújo), Pacific (Marcelo Pedroso), Acidente (Pablo Lobato e Cao Guimarães), Um Lugar ao Sol e Avenida Brasília Formosa e Doméstica (Gabriel Mascaro), A Casa de Sandro e Chantal Akerman, de Cá (Gustavo Beck), entre tantos outros, com grande repercussão crítica nacional e com participação em grandes festivais internacionais, como Locarno e Roterdã.

Hoje, outros festivais no Brasil destacam-se como centros de referência na difusão de novos formatos audiovisuais, como a Mostra do Filme Livre (RJ), a Mostra de Tiradentes (MG), o Festival CineEsquemaNovo (RS), a Janela do Cinema (PE), entre alguns outros.

Em contraposição ao modelo dos pólos de produção – grandes centros que concentram uma infra-estrutura cinematográfica baseada em estúdios de produção –, a acessibilidade das tecnologias digitais apontou para um modo de produção baseado em redes, em que pequenos nódulos de produção são interligados através de relações fluidas, baseadas na flexibilidade e no dinamismo dos novos modos de produção. Existe, portanto, uma multiplicação de pequenos átomos de produção, gerando um acentramento dos processos de produção.

Enquanto os pólos se baseiam numa concentração geográfica, que geraria economias de escala e de escopo (Hollywood, Vera Cruz, Projac), as redes se estabelecem através de relações dinâmicas, de baixo custo e alta flexibilidade. Reduzindo enormemente os custos fixos, este modelo alternativo de produção se estrutura através da circulação dessas obras, possibilitada especialmente pela internet (youtube, vimeo) e pelos circuitos de difusão não-comerciais (cineclubes, festivais, itinerâncias). Ou ainda, em contraposição a um modelo de produção industrial, existe um cinema pós-industrial, conforme o conceito apresentado por Cezar Migliorin, feito em regime colaborativo, à margem dos sistemas oficiais de legitimação.

Dessa forma, no Brasil tem recebido destaque um conjunto de realizadores, chamados pela nova crítica de “novíssimo cinema brasileiro”. Seja qual for o rótulo que se designe, ele aponta para a emergência de um novo modelo de produção, em geral fora do eixo Rio-São Paulo, com a ênfase em processos colaborativos e produções em rede. Um exemplo é o coletivo Alumbramento, sediado em Fortaleza, Ceará.

No filme Estrada Para Ythaca, os quatro realizadores – Luiz e Ricardo Pretti, Guto Parente e Pedro Diógenes – exercem todas as funções de produção, entre a direção, o roteiro, a fotografia, o som direto, a montagem, e sendo, inclusive, atores de seu próprio filme. Dessa forma, a rígida hierarquia do set de filmagem de uma produção tipicamente industrial, comandada pelo diretor ou pelo produtor, é rompida, com uma forma de produção colaborativa, em que o processo criativo não se dá mais pela organização da divisão do trabalho em categorias técnicas isoladas mas sim por um modo de produção mais flexível, em que as decisões criativas são pensadas de uma forma orgânica.

Da mesma forma, formam-se redes de realizadores, que unem participantes de vários estados do país. É o caso do filme O Céu Sobre os Ombros, de Sérgio Borges, da produtora Teia, de Belo Horizonte. Apesar de ser dirigido por uma única pessoa (o realizador Sérgio Borges), em sua equipe de produção existe a presença de outros realizadores, como Clarissa Campolina (assistente de direção), Ricardo Pretti (montagem) e Ivo Lopes Araújo (fotografia), sendo que os dois últimos residem no Ceará, membros do já citado Alumbramento. Dessa forma, a separação entre funções técnicas é apenas aparente, já que esses membros são também realizadores, e não meramente técnicos que contribuem isoladamente para a elaboração da obra. Dessa sinergia, surge um processo colaborativo, que une realizadores de regiões geográficas distintas, fora do eixo Rio-São Paulo.

Este cinema ainda permanece muito pouco visto, restrito ao circuito de mostras e festivais de cinema, já que o lançamento comercial no mercado de salas de cinema é extremamente concentrado: três ou quatro filmes ocupam metade do circuito exibidor do país, dominado pelos multiplexes. No entanto, a visibilidade desses filmes começa a aumentar, respaldada nos comentários críticos e na exibição de filmes em festivais internacionais, apontando para o vigor dessa nova cena.