(Foto: R7.com)
Hoje a coluna “Bissexta”, do advogado Walter Monteiro, retoma a tragédia de Santa Maria sob o prisma do Direito, área onde o colunista milita.
O Jeito Brasileiro de Lidar com a Tragédia
A história envelheceu um pouco – porque há quem me garanta que o Rio de Janeiro vive um choque de ordem – mas serve de exemplo, porque tenho certeza que a informalidade ainda grassa por aí.
Meu escritório carioca fica no coração do centro da Cidade Maravilhosa. Toda 6a feira eu presenciava um espetáculo dantesco: por volta das 17h, sem qualquer cerimônia, um sujeito removia o bueiro localizado em frente a um restaurante que só funcionava na hora do almoço e fazia um “gato” na rede elétrica, instalando tomadas temporárias.
Em seguida, plugava um potente equipamento de som, com caixas acústicas imensas. Acomodava algumas tábuas de madeiras em cima de engradados de cerveja e improvisava um quiosque. Espalhava mesas e banquetas de plástico. E às 18 horas ligava o som e iniciava a venda de churrasquinho e cerveja. Todos os escritórios da redondeza se viam obrigados a interromper o expediente, porque era impossível seguir trabalhando com o pagode e o funk rolando em volume máximo.
Tudo isso, devo acrescentar, a menos de 20 metros da sede da Procuradoria do Município do Rio de Janeiro, onde as centenas de pessoas que ali trabalhavam fingiam nada ter a ver com aquela usurpação do espaço público.
E eu sempre pensava o que aconteceria se, determinado dia, o dono do restaurante cismasse de ele próprio concorrer com a camelotagem à sua porta, oferecendo algo a mais que as cadeiras de plástico, o churrasquinho de gato e a cerveja nos copos de plástico.
Ele teria que modificar o alvará, porque sua licença convencional não lhe permitiria tocar música ao cair da tarde. Precisaria prover isolamento acústico, para não incomodar a vizinhança. Teria que impedir a entrada de menores, pois lá se venderia bebida alcoólica. Teria que recolher um valor para o ECAD sobre cada canção que tocasse.
Só que ele não fazia nada disso. às 16 horas ele fechava o restaurante e ia para casa. Nem encontrava com o ladrão de energia, que chegava pouco depois e montava seu mafuá na porta. O qual funcionou com absoluta e pontual regularidade por anos a fio.
Disse tudo isso para ser antipático e caminhar na contramão do senso comum nesses dias tristes aqui no Rio Grande do Sul: estou surpreso com o ódio que se dissemina contra os proprietários da casa noturna de Santa Maria, que, mal ou bem, enfrentavam toda essa trilha de burocracia que acabo de mencionar.
Não sei se eles são culpados ou inocentes. Sei, apenas, que em uma sociedade submetida ao Império da Lei, o princípio da inocência é regra geral. E que merecem, como qualquer acusado, verem respeitado seu direito à ampla defesa.
O advogado deles concedeu uma entrevista coletiva.
Foi massacrado: pelos repórteres, pelos comentaristas, pelas autoridades, pela população em geral. Imagino que ele até deva estar gostando: advogados costumam adorar esses momentos que duelam contra os moinhos de vento. Se até eu mesmo estou aqui tirando uma casquinha ao escrever no blog contra a opinião pública, imagina ele, que está debaixo dos holofotes.
(Esclarecimento necessário: o advogado em questão não é meu amigo, eu só o conheço muito vagamente. Certa vez ele organizou um jantar para a comunidade jurídica local e pediu para a secretária dele me convidar. Estive lá, estava lotado, comi um assado, troquei 2 ou 3 palavras com ele e fui embora cedo. Portanto, não o estou defendendo por razões pessoais, que fique bem claro).
Essa reação destemperada e raivosa mostra o jeito brasileiro de lidar com o drama humano. Há centenas de estabelecimentos comerciais igualmente despreparados para fatalidades como a de Santa Maria. Agora, depois da casa arrombada, estão sendo fechados a toque de caixa, mas qualquer um deles poderia ter sido palco de tragédia semelhante.
E não apenas casas noturnas, diga-se de passagem: não se passaram nem três dias do incêndio e faltou muito pouco para o estádio do Grêmio abrigar um massacre talvez ainda pior (foto).
Como ninguém morreu no ato, pareceu natural que a partida continuasse enquanto as ambulâncias recolhiam os feridos que caíram no fosso depois que o alambrado não resistiu à comemoração do gol gremista.
Buscar culpados? Para que, já que ninguém morreu ou se feriu gravemente?
Apesar disso, há um sentimento generalizado de pregar na cruz os donos da boate, como se fossem eles responsáveis por terem ateado fogo na casa e trancado todos lá dentro.
Volto a dizer: pode ser que eles tenham lá sua dose de culpa. Ou até uma culpa extensa, definitiva. Mas não é isso que parece à primeira vista. Eles eram, até semana passada, donos de um estabelecimento comercial que funcionava razoavelmente dentro do padrão vigente nessa terra adorada, onde acessibilidade, segurança e limites de público não estão no topo da lista de prioridades de ninguém.
[N.do.E.: talvez a culpa deles resida em ter optado por um revestimento acústico inadequado em termos de inflamabilidade. Talvez.]
Eles, em resumo, dançavam conforme a música. Eu não consigo deixar de pensar na dor que devem estar sentindo, no peso que ora recai sobre seus ombros, na cruz que haverão de carregar pelo resto de seus dias – ainda que venham a ser inocentados.
A comoção generalizada e a dor profunda que todos sentimos pelos que partiram nessa tragédia hedionda são compreensíveis. Mas pendurar no pelourinho os donos da boate não ameniza o sofrimento, nem impede que outros eventos voltem a ocorrer (insisto, lembrem-se da Arena do Grêmio três dias depois).
Vamos deixar que eles se defendam em paz, reconhecendo, de uma vez por todas, que o princípio da inocência é um valor fundamental da civilização.
Não escreveria melhor, mas concordo com cada palavra escrita.
… que bom que alguém conseguiu melhor verbalizar do que eu. Na semana posterior ao trágico acontecimento me pus a pensar nisso. Essa dor na consciência, quer castigo maior? Se vamos crucificar tais agentes, por que não começar pelos políticos que elegemos; pela falta de educação do nosso povo, pelo “jeitinho institucionalizado”, pelo desrespeito no trânsito, no cinema, na fila, aos mais cotidianos deveres? pelo jeitinho que vimos e nada fizemos? … tanta coisa, tanta coisa errada…