z48Na última semana causou grande polêmica a declaração do Presidente da Nestlé, Peter Brabeck, de que a água deveria ser um bem sujeito às variações do mercado e não um direito fundamental do cidadão. Em sua visão este conceito de “privatização” da água impediria o “desperdício” de seu uso e tornaria mais racional sua utilização.

Antes de analisarmos estas declarações, vale lembrar que a Nestlé é a maior engarrafadora de água mineral do planeta, ou seja: seria beneficiária direta de uma “privatização” da água. De acordo com as declarações de seu presidente toda a água doce disponível no planeta deveria estar sob  a égide do mercado, ressalvada pequena parcela (5 litros) diária que os governos deveriam prover a cada cidadão a fim de que ninguém morra de sede.

Ainda segundo seu raciocínio, privatizar toda a água disponível do mundo “diminuiria o desperdício” e tornaria mais racional o seu uso. O leitor mais antenado já deve ter percebido que este é um discurso comum aos defensores do neoliberalismo econômico: todos os aspectos da vida em sociedade devem ser deixados ao sabor do mercado.

Entretanto, basta dizer que a própria Nestlé subverte esta lógica da “diminuição do desperdício”: aqui perto, em São Lourenço (MG), a marca, que é dona da empresa de água mineral do mesmo nome, está depletando as reservas locais: ou seja, está extraindo e engarrafando em uma velocidade maior que a reposição das fontes. Traduzindo: as fontes estão fadadas à extinção.

Mantendo-se este raciocínio, se eu parar o carro na beira de um rio e beber um copo de água, deveria pagar pelo seu uso à “dona” do local. Se há dinheiro, consome-se água. Se não há, que se queixe ao bispo.

O debate, portanto, é filosófico: a água é um bem “livre”, ou seja, fora do mercado de oferta e demanda? É um direito fundamental do cidadão?

A resposta parece óbvia, mas como vemos acima não é algo que se tenha unanimidade. Por mais que nós moradores da cidade paguemos à concessionária que nos traz o líquido engarrafado, o que se paga é pelo serviço de captar, tratar e enviar a água até nossas residências. Caso não queiramos utilizar-nos destes serviços, podemos cavar um poço ou ir até o rio mais próximo captar as nossas necessidades de consumo.

Dentro da postura “empresarial”, os cidadãos não poderiam mais se utilizar destas alternativas. Uma empresa iria controlar o acesso à água  cobrando caro por isso. Não parece absurdo imaginarmos exércitos de fiscais nos rios e fontes proibindo que saciemos a sede. Ou pessoas morrendo de sede ou de doenças por não uso de água adequada. É a mercantilização de um direito primordial do ser humano. 

Também há que se lembrar que inclusive guerras se empreendem pelo acesso à água: um dos objetivos americanos  no Iraque é o de desviar o curso dos rios Tigre e Eufrates para Israel, seu aliado incondicional. O mesmo ocorre na ocupação palestina pelo referido país.

O leitor deve estar pensando que privatizar a água é algo absolutamente sem sentido e que mercantilizar a obtenção e uso da água fere um direito fundamental do ser humano, não é? E quando falamos dos alimentos?

Está em curso iniciativa semelhante, tendo os transgênicos como instrumento. As sementes destes alimentos são propriedade de quatro empresas (Nestlé entre elas), tendo a Monsanto como líder e dominadora neste caso. No caso, a propriedade das sementes e dos defensivos agrícolas torna estas empresas donas e controladoras da produção alimentícia do mundo à medida em que os transgênicos aumentam sua participação na cultura.

Para nós que moramos nas cidades, em termos de acesso aos alimentos não há grande diferença: sempre pagamos para ter acesso aos mesmos. Contudo, no mundo do campo isso representaria uma mudança de paradigma, pois a agricultura de subsistência, onde se produz para consumo próprio e se vende ao mercado o excedente de produção, teria de ser extinta.

Este é um fenômeno de consequências econômicas e sociais dramáticos. Em um futuro, mesmo aqueles que pretendem cultivar sua roça de subsistência ou ainda uma inocente horta caseira na varanda não poderiam dado o poder destas empresas. Em um primeiro momento a produção transgênica é mais barata, contudo a cada safra se necessita de uma maior quantidade de defensivos agrícolas, tornando mais cara a produção e o produto.

Um outro ponto a se mencionar é que estas empresas que dominam a produção de alimentos geneticamente modificados vem travando combate vigoroso contra a produção de alimentos orgânicos, mais saudáveis e menos agressivos ao meio ambiente. Óbvio: para a obtenção do monopólio e do domínio total da produção de alimentos faz-se necessário eliminar qualquer tipo de ameaça ao mercado.

Se contra a agricultura de subsistência se utiliza o poder econômico, contra os orgânicos estas empresas exercem seu poder de pressão em organismos reguladores governamentais. É mais fácil hoje colocar à venda um produto transgênico que um orgânico.

Por outro lado quando se alcançar o domínio incontestável do mercado os preços tendem a subir exponencialmente, como resultado do poder monopolista – e, como as culturas vão se tornando resistentes ao defensivo agrícola, a quantidade necessária deste é cada vez maior, o que sobe o custo do produto. Então o conceito de “segurança alimentar” estará refugiado em um oligopólio empresarial – um caso claro de oposição entre o interesse empresarial e o bem estar da coletividade.

A longo prazo o caminho é o mesmo da água: privatizar a produção de alimentos e colocar todo o mundo a mercê de três ou quatro empresas, tendo a Monsanto como líder. Perceba o leitor que aqui não discorro sobre os prejuízos à saúde causados por estes alimentos: o vídeo acima, embora longo, traça um bom panorama dos efeitos à saúde causados por estes produtos.

Isso, sem contar com fenômenos como o de “portas giratórias”, o qual assistimos também em setores como o financeiro. Empresas como a Monsanto infiltram profissionais nos órgãos reguladores a fim de impor seus interesses. Depois estes mesmos voltam à empresa.

Fico longe, bem longe de esgotar o assunto aqui, mas vale alertar sobra a tendência de privatização da água (distante) e dos alimentos (mais próxima) a médio e longo prazos. Muitas vezes não temos conhecimento do que ocorre fora do que nossa visão consegue alcançar.

2 Replies to “Privatizar a água e os alimentos?”

  1. Pensar no rio como fonte de recursos talvez seja um pouco de inocência. Se permitida a privatização da água, aquele que controla a fonte que teria o verdadeiro poder.
    “Quer um rio correndo na sua propriedade? Me pague como produtor, pois é na minha terra que está a fonte que produz a sua água.” E assim os banhos de cachoeira vão se tornar prazeres mais caros que uma viagem ao exterior.

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