Na última semana causou grande polêmica a declaração do Presidente da Nestlé, Peter Brabeck, de que a água deveria ser um bem sujeito às variações do mercado e não um direito fundamental do cidadão. Em sua visão este conceito de “privatização” da água impediria o “desperdício” de seu uso e tornaria mais racional sua utilização.
Antes de analisarmos estas declarações, vale lembrar que a Nestlé é a maior engarrafadora de água mineral do planeta, ou seja: seria beneficiária direta de uma “privatização” da água. De acordo com as declarações de seu presidente toda a água doce disponível no planeta deveria estar sob a égide do mercado, ressalvada pequena parcela (5 litros) diária que os governos deveriam prover a cada cidadão a fim de que ninguém morra de sede.
Ainda segundo seu raciocínio, privatizar toda a água disponível do mundo “diminuiria o desperdício” e tornaria mais racional o seu uso. O leitor mais antenado já deve ter percebido que este é um discurso comum aos defensores do neoliberalismo econômico: todos os aspectos da vida em sociedade devem ser deixados ao sabor do mercado.
Entretanto, basta dizer que a própria Nestlé subverte esta lógica da “diminuição do desperdício”: aqui perto, em São Lourenço (MG), a marca, que é dona da empresa de água mineral do mesmo nome, está depletando as reservas locais: ou seja, está extraindo e engarrafando em uma velocidade maior que a reposição das fontes. Traduzindo: as fontes estão fadadas à extinção.
Mantendo-se este raciocínio, se eu parar o carro na beira de um rio e beber um copo de água, deveria pagar pelo seu uso à “dona” do local. Se há dinheiro, consome-se água. Se não há, que se queixe ao bispo.
O debate, portanto, é filosófico: a água é um bem “livre”, ou seja, fora do mercado de oferta e demanda? É um direito fundamental do cidadão?
A resposta parece óbvia, mas como vemos acima não é algo que se tenha unanimidade. Por mais que nós moradores da cidade paguemos à concessionária que nos traz o líquido engarrafado, o que se paga é pelo serviço de captar, tratar e enviar a água até nossas residências. Caso não queiramos utilizar-nos destes serviços, podemos cavar um poço ou ir até o rio mais próximo captar as nossas necessidades de consumo.
Dentro da postura “empresarial”, os cidadãos não poderiam mais se utilizar destas alternativas. Uma empresa iria controlar o acesso à água cobrando caro por isso. Não parece absurdo imaginarmos exércitos de fiscais nos rios e fontes proibindo que saciemos a sede. Ou pessoas morrendo de sede ou de doenças por não uso de água adequada. É a mercantilização de um direito primordial do ser humano.
Também há que se lembrar que inclusive guerras se empreendem pelo acesso à água: um dos objetivos americanos no Iraque é o de desviar o curso dos rios Tigre e Eufrates para Israel, seu aliado incondicional. O mesmo ocorre na ocupação palestina pelo referido país.
O leitor deve estar pensando que privatizar a água é algo absolutamente sem sentido e que mercantilizar a obtenção e uso da água fere um direito fundamental do ser humano, não é? E quando falamos dos alimentos?
Está em curso iniciativa semelhante, tendo os transgênicos como instrumento. As sementes destes alimentos são propriedade de quatro empresas (Nestlé entre elas), tendo a Monsanto como líder e dominadora neste caso. No caso, a propriedade das sementes e dos defensivos agrícolas torna estas empresas donas e controladoras da produção alimentícia do mundo à medida em que os transgênicos aumentam sua participação na cultura.
Para nós que moramos nas cidades, em termos de acesso aos alimentos não há grande diferença: sempre pagamos para ter acesso aos mesmos. Contudo, no mundo do campo isso representaria uma mudança de paradigma, pois a agricultura de subsistência, onde se produz para consumo próprio e se vende ao mercado o excedente de produção, teria de ser extinta.
Este é um fenômeno de consequências econômicas e sociais dramáticos. Em um futuro, mesmo aqueles que pretendem cultivar sua roça de subsistência ou ainda uma inocente horta caseira na varanda não poderiam dado o poder destas empresas. Em um primeiro momento a produção transgênica é mais barata, contudo a cada safra se necessita de uma maior quantidade de defensivos agrícolas, tornando mais cara a produção e o produto.
Um outro ponto a se mencionar é que estas empresas que dominam a produção de alimentos geneticamente modificados vem travando combate vigoroso contra a produção de alimentos orgânicos, mais saudáveis e menos agressivos ao meio ambiente. Óbvio: para a obtenção do monopólio e do domínio total da produção de alimentos faz-se necessário eliminar qualquer tipo de ameaça ao mercado.
Se contra a agricultura de subsistência se utiliza o poder econômico, contra os orgânicos estas empresas exercem seu poder de pressão em organismos reguladores governamentais. É mais fácil hoje colocar à venda um produto transgênico que um orgânico.
Por outro lado quando se alcançar o domínio incontestável do mercado os preços tendem a subir exponencialmente, como resultado do poder monopolista – e, como as culturas vão se tornando resistentes ao defensivo agrícola, a quantidade necessária deste é cada vez maior, o que sobe o custo do produto. Então o conceito de “segurança alimentar” estará refugiado em um oligopólio empresarial – um caso claro de oposição entre o interesse empresarial e o bem estar da coletividade.
A longo prazo o caminho é o mesmo da água: privatizar a produção de alimentos e colocar todo o mundo a mercê de três ou quatro empresas, tendo a Monsanto como líder. Perceba o leitor que aqui não discorro sobre os prejuízos à saúde causados por estes alimentos: o vídeo acima, embora longo, traça um bom panorama dos efeitos à saúde causados por estes produtos.
Isso, sem contar com fenômenos como o de “portas giratórias”, o qual assistimos também em setores como o financeiro. Empresas como a Monsanto infiltram profissionais nos órgãos reguladores a fim de impor seus interesses. Depois estes mesmos voltam à empresa.
Fico longe, bem longe de esgotar o assunto aqui, mas vale alertar sobra a tendência de privatização da água (distante) e dos alimentos (mais próxima) a médio e longo prazos. Muitas vezes não temos conhecimento do que ocorre fora do que nossa visão consegue alcançar.
Pensar no rio como fonte de recursos talvez seja um pouco de inocência. Se permitida a privatização da água, aquele que controla a fonte que teria o verdadeiro poder.
“Quer um rio correndo na sua propriedade? Me pague como produtor, pois é na minha terra que está a fonte que produz a sua água.” E assim os banhos de cachoeira vão se tornar prazeres mais caros que uma viagem ao exterior.