Neste dia de Natal, a coluna do crítico, cineasta e professor Marcelo Ikeda nos traz três pequenas avaliações de filmes. Como sempre, publicada em parceria com o blog de mesmo nome. O Ouro de Tolo aproveita para desejar um Feliz Natal a todos os seus leitores.
Três Breves Textos
Algumas impressões sobre três filmes, sempre vistos e revisitados.
Difícil filme este THE BLING RING. De que lado Coppola está? Do lado dos que roubam, ou do lado dos que são roubados?De quem ela tem raiva, ou por quem ela tem paixão?
De ambos. Coppola, a eterna filha de Coppola, querendo ou não? Então, de que lado se pode estar? Todos os filmes anteriores de Sofia Coppola eram uma espécie de ajuste de contas com seu passado, os conflitos entre a admiração pela opulência e um nojo desse mesmo circuito. Como se posicionar?
THE BLING RING é uma mistura entre AS VIRGENS SUICIDAS e MARIA ANTONIETTA. Amoralismo das jovens que, juntas, querem ir além dos limites do mundo, viver a vida como se fossem só elas. Pesar por esse conto de fadas vazio e pretensamente opulento. Um tédio. Mas THE BLING RING não tem a melancolia de MARIA ANTONIETTA nem de SOMEWHERE. Há algo que pulsa nos jovens, mas o que pulsa não deixa de ser vazio e autocomplacente. Um filme com variações em torno do mesmo ato. Andar em círculos.
Então, de que lado se está? O que se busca com esse filme?
Nem tanto um prazer em filmar, nem tanto decupar as estripulias próprias do universo do cinema: há um certo torpor mas ao mesmo tempo uma certa recusa. Coppola usa toda a estrutura de produção que está disponível para fazer os seus filmes para promover tabalhos ambíguos entre a identificação e o distanciamento desse universo. É isso o que me parece aproximar este filme de MARIA ANTONIETA: os personagens vivem em castelos de cartas, pois é o que há para viver, nada mais. Opulência dos personagens, opulência da diretora, no seu “parque de diversões” de Hollywood. Mas sem melancolia, sem culpa, sem missões e sem desejo.
Um prazer moderado, um prazer nada deslumbrado: THE BLING RING não é SPRING BREAKERS com seus jogos visuais de sedução “sensorial”. Nem sexo há. Não há prazer; os roubos apenas se sucedem. A prova disso é que boa parte do filme é filmada em planos gerais (bela opção). A paisagem – ou ainda, a opulência da paisagem – talvez seja a grande personagem desse filme ambíguo, que merece uma revisão mais atenta, que dialoga com filmes anteriores ao mesmo tempo que ventila a filmografia de Sofia Coppola.
La fille de nulle part
Aqueles poucos que acompanham com algum interesse os escritos deste blog devem imaginar o que representa para mim ver um filme em que um diretor se põe em cena para se filmar em casa. Eu me sinto como se fosse uma testemunha de uma cerimônia num templo budista! É um daqueles lugares em que eu entro devagar, pé por pé, e escolho um lugar estratégico para me sentar, e ali fico sem me mover!
Pois bem, desta vez, penso que LA FILLE DE NULLE PART (foto ao alto do post) é uma espécie de resposta dura a uma posição que Brisseau foi posto num certo cinema francês. A simplicidade de sua encenação, sua sobriedade, sua serenidade, tem grande impacto para (surpreende) aqueles que conhecem a obra pregressa de Brisseau, e para quem ouviu um pouco dos bastidores da grande confusão que foram seus últimos filmes (penso em OS ANJOS EXTERMINADORES, não sei se outros) quanto às acusações do papel das mulheres e que ele seria um aproveitador (qual artista não é um aproveitador?).
Brisseau faz uma resposta dura, porque doce. Seu filme é sobre um fim (é um filme fatalista), mas, com sobriedade, sem ressentimento, ele consegue olhar para frente, é generoso. Brisseau não se filma de forma autocomplacente como Jean-Claude Rousseau em DE SON APPARTEMENT nem com a veia ferina, a autocrítica corrosiva de Jacques Nolot em AVANT QUE J’OUBLIE.
Brisseau tampouco morre cego como Carlão morreu em AVANTI POPPOLI. LA FILLE DE NULLE PART é uma mistura curiosa de WHATEVER WORKS com GRUPPO DI FAMIGLIA IN UN INTERNO. Contra o ressentimento, Brisseau faz um cinema possível. Retira-se em um apartamento; coloca-se em cena. Retira o que é escandaloso e provocativo e reduz o seu cinema à sua matéria-prima, à sua seiva. Campos-contracampos. O místico, o inefável, o desejo. A invenção. A necessidade de criar. A necessidade de amar. A vontade de arriscar tudo por um amor fugaz. À beira do oportunismo. Uma vida miserável, uma vida sem Deus. A solidão.
O romance que o personagem de Brisseau escreve – talvez patético romance, não o sabemos – termina com uma citação a Van Gogh: “Eu passo muito bem sem Deus, seja em minha vida seja na pintura. Mas, sofredor como sou, eu não passo sem algo que é maior do que eu, que é a minha vida: o poder de criar.”. Ao acabar o livro – é o que restou da vida, é o que é possível – o que resta a não ser morrer? O que resta, a não ser lembrar daquela cálida chama, que alguns podem chamar de amor? Um corpo que definha. Agora é tarde demais. Resta celebrar o que fica (algumas palavras num pedaçõ de papel, escritas a duas penas – o conforto contra o risco), e resta celebrar o que prossegue – a vida, o sexo, o feminino, aquilo que abre as janelas, que foge pelas portas, e que escapa pelas ruas do mundo. Mesmo sendo frágil amar, dolorido, doloroso. A juventude é difícil enquanto se é jovem, é bela quando vista de longe.
É o que se tem. Brisseau permanece do lado de dentro – é tarde demais para tentar sair – mas não morre cego nem joga bolinha pra sua cachorra (ele permanece com uma missão, seja ela qual for, tendo sentido ou não, ao menos é uma “razão de ser”, o que mais se pode querer se não se pode mais amar?): ele vê uma névoa de luz na parte final da sua vida, e celebra por isso. Por conseguir ver essa luz que se esvai, e por permitir que essa luz brilhe mais um pouco – o que só é possível após o seu adeus. E isso basta. Em O diário aberto de R. (acima) aproximamo-nos da intimidade de seu personagem, mas ainda assim mantendo uma certa distância. Este singelo curta de Caetano Gotardo é sobre o intervalo entre ação e imaginação. Seu protagonista praticamente não emite palavra durante o curta. Ele espera. Observa. Espera o momento de chegar mais perto e emitir essa palavra.
O curta então é sobre essa palavra que não pode ser dita. Sobre esse passo que não pode ser dado, sobre essa distância que não pode ser percorrida. Sobre não poder se aproximar mais. Sobre esse amor que é sentido mas não pode ser dito, experienciado, expresso, colocado em palavras. O que fazer então? Observar, do mais perto que se possa, ainda que não seja perto o suficiente. Ou criar. Imaginar. Se a palavra não pode ser dita, ela pode ser escrita em um diário. Os diários são guardados para si. Criar, imaginar….filmar. Assim, ao final O diário aberto de R. fala do seu próprio processo de gênese: criar como forma de preencher esse intervalo entre agir e imaginar.
O DIÁRIO ABERTO DE R. me lembra, curiosamente, de NÃO AMARÁS: uma vida que é vivida a partir de seu contracampo. Pode-se ser feliz apenas em observar o amor, de uma certa distância?