A coluna da jornalista Milly Lacombe pede para que o Fluminense honre a camisa e faça o que é legítimo – e não o que parece ser legal.
O Flu precisa cair para se salvar
Eu torço para dois times. Alguns chamam de falta de caráter, outros de dupla personalidade, mas eu acho apenas que é amor, e que todo o amor se justifica. Sei que há muitos outros como eu por aí; mas como o assunto é tabu, ele não vem à tona.
O amor pelo Flu eu herdei de meu pai e bateu mais cedo. O amor pelo Corinthians eu herdei de um grande amor que amava a mim e ao Corinthians, e não nessa ordem. Era tanto amor que não teve como não transbordar para o meu lado. E como moro em São Paulo desde muito pequena, a proximidade com o Pacaembu me fez ter mais intimidade com o Corinthians em anos recentes.
Mas a verdade é que quando jogavam Corinthians e Flu eu torcia para o Flu.
Tudo mudou quando a pessoa que me ensinou a amar o Corinthians foi levada daqui depois de um acidente estúpido e de forma absurdamente prematura. A vida não é justa, e o futebol ensina isso. Mas quando a injustiça bate assim na sua cara, e te arranca um grande amor pelas rodas de uma motocicleta que trafega acima da velocidade permitida, você vai ao chão e só levanta depois de muito tempo e de muita dor. E ao ficar novamente de pé, você entende que já não é mais a mesma pessoa.
Mas o fato é que os dois amores me habitam e eu não tenho como escapar deles.
Falo aqui com meu lado tricolor, mas usando a experiência de quem torce para um time que caiu – e voltou. Duas coisas salvaram o Corinthians, e eu as listo aqui – a queda para a segunda e a derrota para o Tolima. Não fossem essas duas tragédias, o time não teria a temporada de históricas vitórias que teve.
Quando o Corintians caiu, eu sabia de uma coisa apenas: que a queda era necessária, por mais dolorida que fosse. A tristeza é inevitável, e a gente vive uma época que teima em não nos deixar sentir, por isso a pouca intimidade com a dor profunda. Mas de um jeito estranho, enquanto eu chorava e via a torcida chorando no Olímpico, eu sabia que havia uma beleza naquilo. Não sabia que ainda haveria um Tolima pela frente, mas sabia que dias lindos estavam no horizonte, sabia que a partir dali o time estava pronto para se refazer.
É essa experiência que me faz ter certeza de que prefiro o Flu na segunda divisão. Cair não é vergonha. É estando embaixo que a gente aprende a se reagrupar, a voltar mais forte, a jogar fora o que não presta. Existe um tipo de união que só vem do sofrimento e se ganhar é maravilhoso, perder é fundamental. Perder engrandece o caráter.
Mas o Fluminense não teve nada a ver com a punição da Lusa, dizem. Não tem mesmo. Mas então por que diabos se meteu na confusão? Por que mandou advogado para o julgamento?
A história da punição à Portuguesa é toda estranha, toda emaranhada, a começar por uma suspensão de dois jogos dada numa sexta-feira para ser cumprida já no domingo, pela insignificância do jogo, pelo disse que disse do advogado que advoga para todos os times do mundo etc etc etc. Não entendo patavinas da lei, apenas sei, por experiência própria, que ela não está aí para fazer justiça. Muitas vezes, aliás, é quando é cumprida que sacramenta injustiças.
No caso da punição à Portuguesa é tudo confuso, burocrático, talvez propositalmente burocrático, e com mil interpretações possíveis. Uma delas, claro, a perda de pontos para Lusa, que resultaria na permanência do Flu na série A. É preciso saber que existe uma diferença entre o legítimo e o legal, como me ensinou o grande jornalista e amigo e gênio Edson Rossi: o que é legal não necessariamente é legítimo, como a escravidão, que nunca foi legítima, mas era legal. A permanência do Fluminense na A pode ser defendida pela letra da lei, mas não me parece legítima.
E tem um troço que incomoda muito, que é essa briga de um grande contra um menor. Quando as coisas são movidas por dinheiro, e muito dinheiro, o mais fraco raramente vence. E é nessa hora que as pessoas encontram razões para cruzar linhas éticas e morais. Ou vocês acham que se fosse o Flamengo no lugar da Portuguesa esse mesmo tribunal teria rebaixado o time carioca?
Como já temos o ranço de termos subido direto da C para a A, ainda que tecnicamente a manobra possa ser justificada, a fama vai grudar e jamais nos abandonar. É melhor isso do que jogar a B e voltar por cima? Perderíamos muito jogando a B? Milhões, dizem. Valem mais do que nossa dignidade? Times grandes já caíram e subiram fortes, qual o grande medo?
O futebol que jogamos é de série B, nosso patrocinador manda no futebol do clube (e pertence, aliás, ao segmento de mercado mais nocivo do mundo: essa indústria adoentada que vende acesso à saúde privada) e mesmo com um elenco forte jogamos como os fracos que não somos. A série B tiraria o time da letargia e deixaria claro que alguma coisa muito errada está acontecendo para os lados das Laranjeiras.
O que nos daria valor moral: dizer que vamos jogar a B, a despeito do que possa mandar a letra da lei, a despeito do erro da Lusa., a despeito de termos garantido a permanência na A dentro de um tribunal. Que grande loucura seria isso, não? Que arrancada histórica, que adorável maluquice essa de colocar a moral à frente de interesses de direito de imagem, de dinheiro de TV, de exposição na mídia, de patrocinadores. A ética vencendo o corporativismo. Apagaríamos de vez o ranço da virada de mesa, calaríamos o mais crítico dos críticos, mostraríamos nossas verdadeiras cores, o colossal tamanho da camisa que amamos.
Jogar a B não deveria ser vergonha porque não há nada de errado em perder. Não deveria haver. Deveria, isso sim, ser uma oportunidade de refletir sobre como mudar, como melhorar, resgatar erros, retomar caminhos. O Flu está jogando fora a chance de de crescer, de evoluir. É uma pena porque na vida, e no jogo, a gente simplesmente não pode abrir mão de uma chance como essa.
Vamos, Flu, ainda dá tempo: agarra essa chance e faz história.
Milly Lacombe
Meus parabéns pelas palavras, não por ser torcedora da LUSA, mas pela dignidade, honra e moralidade que é o que um grande clube como o fluminense deveria preservar, mas jogou tudo isso no lixo.