Nesta segunda feira o advogado Gustavo Cardoso inicia uma série de duas colunas abordando a Rússia a partir das Olimpíadas de inverno que se realizam na cidade de Sochi. Hoje a questão política e, amanhã, a homofobia.

As Olimpíadas de Putin – Parte I

Os Jogos Olímpicos de Inverno que estão acontecendo em Sochi começaram sob uma saraivada de ataques da imprensa ocidental ao presidente russo Vladimir Putin. Não foram poucas as revistas americanas e europeias que lhe dedicaram capas, nas quais o apresentavam como o dono de uma sub-potência retrógrada e decadente, com patéticas ilusões de poder global.

As críticas a Putin têm centrado fogo em seu autoritarismo e em suas irritantes (para os ocidentais) manobras geopolíticas. Para consumo do grande público, de vez em quando voltam à questão da escalada da homofobia na Rússia, pelo que tentam culpar o próprio Putin, e que quase desencadeou um boicote a estes Jogos.

Na primeira parte deste artigo, tentarei chegar às verdadeiras razões do conflito, fazendo uma interpretação crítica das investidas euroamericanas; na segunda parte, analisarei a campanha “anti-homofóbica” do “ocidente” contra a Rússia de Putin, procurando situá-la no atual quadro global de luta pelos direitos humanos.

Não por coincidência, os últimos ataques a Putin se seguiram ao cabo-de-guerra entre Rússia e União Europeia pela Ucrânia. A dinâmica foi curiosa. O presidente Viktor Yanukovich, precisando de dinheiro, praticamente colocou o país em leilão. A população – pelo menos a parte mais urbana e ocidentalizada da população – preferia mais integração com a União Europeia, mas o FMI condicionou ajuda econômica aos famigerados “ajustes” recessivos. A Rússia, interessada em manter o vizinho em sua órbita de influência, ofereceu um empréstimo muito mais camarada, com a condição de que o país se mantivesse longe da Europa.

O resultado foi uma onda de protestos nas ruas, uma intervenção ineficaz da UE pela pacificação e, finalmente, uma iniciativa da ONU. Quando chegou a este ponto, alguém (possivelmente o SVR) fez a diabrura de vazar uma conversa pessoal da Subsecretária de Estado americana, a neocon Victoria Nuland, sobre o assunto, o que causou mais rancor do que já havia entre EUA e Europa. Deixarei na obscuridade da língua original: “That would be great to have the U.N. help glue it. And you know, fuck the EU.”

O affair Ucrânia serve de exemplo de como o ocidente tem perdido poder relativo nas últimas décadas, e de como os instrumentos tradicionais de controle, como o FMI, têm perdido eficácia. Mais ainda do que a Rússia, a China tem avançado em mercados antes dependentes de americanos e europeus, na Ásia, África e América Latina, e um dos mecanismos mais certeiros têm sido o de financiar o desenvolvimento de países pobres sem aplicar as receitas amargas das instituições financeiras internacionais.

Houve, também, o caso da Síria. Este país é um satélite da Rússia no Oriente Médio, e Putin se empenhou dedicadamente em evitar uma intervenção militar americana contra seu aliado Bashar al-Assad. A maior parte da elite política e militar americana realmente não queria tal intervenção, mas a solução negociada acabou parecendo uma vitória de Putin; tanto mais porque Obama chegou a anunciar em 2013 que se engajaria na guerra, e foi forçado a voltar atrás dias depois.RUSSIA-PUTIN-VACATION

E há uma inegável curva autoritária na política desse país que nunca foi realmente democrático. Há oposição política, mas pouca liberdade de expressão. Como a corrupção no país é endêmica, não é difícil para Putin arrumar pretextos justificados nos fatos para perseguir adversários. Também é inegável que Putin é popular mesmo, ainda que seja autocrático.

A imprensa ocidental chia, e o presidente fez alguns gestos simbólicos para parecer mais suave, como libertar seu adversário político Mikhail Khodorkovski, as cantoras da banda punk Pussy Riot e os ativistas do Greenpeace presos durante um protesto no Oceano Ártico. Mas todos se esqueceram de suas atrocidades na Chechênia, quando trocou apoio com Bush para as guerras americanas no Oriente Médio.

O carisma de Putin é do tipo exibicionista, à la Collor. Ele gosta de ser fotografado sem camisa, cantando, em carros de corrida e praticando artes marciais. Combinada com seu semblante sério, a imagem fica ainda mais risível numa imprensa submissa como é a russa, e tende a ser explorada de forma cruel no ocidente.

Para entender como Putin se tornou uma figura tão execrada a oeste dos Cárpatos, é preciso recordar o colapso da União Soviética e o que a Rússia esteve por se tornar sob seu antecessor Boris Iéltsin. O império soviético ruiu exatamente quando entrava em voga a moda do “neoliberalismo” no ocidente. Iéltsin aderiu cegamente ao ideário, e colocou a ex-superpotência à venda em liquidação.

Na primeira semana, o povo fez fila para comer no McDonald’s. Na segunda, se acostumou (ou já não tinha dinheiro para comer). O antigo império se esfacelou em velocidade supersônica. Novos bilionários como Boris Berezovski, Roman Abramovich, Konstantin Kagalovsky, Mikhail Khodorkovski e Alex Konanykhin emergiram do nada para se tornarem donos, sabe-se lá como, do que antes costumava ser o país. Enquanto isso, a pobreza cresceu exponencialmente.

Em 1999, após 10 anos de Iéltsin, a renda per capita russa tinha se desintegrado para US$ 1,334, o que a colocava abaixo de países como Paraguai, Guatemala, El Salvador e Namíbia. Pode-se alegar que aquele era o desdobramento inevitável de décadas de comunismo, mas o fato é que, àquela altura, Hungria, República Tcheca, Polônia e mesmo as repúblicas bálticas da ex-União Soviética estavam anos-luz à frente da Rússia.

É neste contexto que Putin assume o governo com mão de ferro: remodela o império – reafirmando seus interesses geopolíticos; reconstrói a economia – sob o controle do estado; e expulsa vários dos oligarcas da Era Iéltsin – não sem refazer algumas alianças. O resultado é que a renda per capita mais que decuplicou desde que ele assumiu o poder pela primeira vez. O povo continua não sabendo o que é liberdade plena, mas pelo menos recuperou parte da sua dignidade.

21-photos-of-vladimir-putin-that-will-melt-your-heartA dogmática Economist insiste que o modelo está prestes a se esgotar, e de fato o crescimento da economia russa dá sinais de desaceleração – mas qual não dá? A emburrada Time não disfarça sua antipatia, mas admite que Putin só deve deixar o Kremlin dentro de um caixão.

A verdadeira frustração do ocidente com Putin não é que ele tenha tornado a vida dos russos menos livre (embora seja verdade). É que ele tornou as potências ocidentais menos livres para comprar a Rússia.