Nesta segunda feira a coluna do advogado Gustavo Cardoso faz uma análise das manifestações de rua em 2013 e do quadro que se apresenta hoje.

Os protestos: ontem, hoje e amanhã

Os protestos de junho de 2013 pegaram de surpresa um país que parecia anestesiado. Foram iniciados pelo Movimento Passe Livre, um pequeno grupo de ativistas que buscava uma meta aparentemente inalcançável – a adoção da tarifa zero nos transportes públicos –, mas que ganhou força quando assumiu uma faceta concreta e factível: reverter um aumento rotineiro de vinte centavos nos metrôs e ônibus do país inteiro que, mais uma vez, despachavam com pouco-caso uma conta para os usuários sem fornecer a mínima melhoria nos serviços.

À medida que os protestos cresciam, se tornavam multiformes, pois ficavam parecidos com as pessoas, bem diferentes, que surgiam nas ruas: de neonazistas a anarquistas, passando por funcionários públicos, arruaceiros, líderes sindicais, representantes independentes de várias categorias profissionais, bandidos, estudantes e, principalmente, uma classe média que repetia chavões contra a corrupção, contra a Copa do Mundo, contra a PEC 37, contra o projeto de “cura gay”, a favor do ministro Joaquim Barbosa, a favor de “saúde e educação”, e assim por diante.

Justa ou injustamente, os eventos de 2013 ficaram marcados com a cara deste último grupo (usando máscara de Guy Fawkes, de quem eles nada sabem, exceto que é “o anonymous”). Diziam-se apartidários, mas não convenciam ninguém disso, exceto, talvez, a si mesmos. À medida que este pessoal tomava as passeatas, e à medida que alguns exaltados iam à frente quebrando tudo, o governo e o congresso se apavoraram, colocaram algumas reformas em pauta, e as prefeituras cancelaram os aumentos dos transportes.

A popularidade do governo federal, que parecia de aço, derreteu como manteiga. O PT tentou trazer seus militantes para a rua para fazer frente aos “coxinhas”, como ficaram conhecidos os manifestantes de junho, e descobriu, chocado, que não lhe restara a menor capacidade de mobilização popular. Pundits tropicais acreditaram que podiam decidir a pauta dos protestos, mas o povo tratou as emissoras de TV com mais ódio que o dedicado aos políticos. Páginas alternativas, como a Mídia Ninja, surgiram no cenário nacional.

O MPL, percebendo que o movimento tomava rumos indesejados (por eles), tirou o corpo fora quando os aumentos foram revogados. A partir de então, os protestos minguaram rapidamente, exceto por aparições eventuais de black blocs (outra expressão que se incorporou ao nosso vocabulário). Foi um momento de catarse pura, era muito claro que não podia durar, e que não levaria a “soluções” duradouras para o país.

No fim de 2013, Dilma já havia recuperado boa parte da aprovação popular que tinha até maio, e a esperança de seus críticos era a de que os protestos voltassem durante a Copa do Mundo, dando-lhe um golpe mortal do qual não teria tempo de se recuperar até as eleições de outubro. Então, neste verão de calor infernal, o aumento das passagens, suspenso ano passado, foi novamente aplicado. Estava claro que o governo não esperaria até junho, em plena Copa do Mundo: se tinha que doer, que doesse logo agora.black_bloc-BrasilEm Porto Alegre, um impasse entre governo federal, governo municipal, oposição, empresas de ônibus e sindicatos levou a uma greve. No Rio havia a promessa de que até 2016 todos os ônibus teriam ar condicionado, mas devido ao adiamento do aumento, as companhias avisaram que não cumprirão a agenda. Por enquanto, pouco mais de 27% dos ônibus da zona sul são refrigerados, contra pouco mais de 1% dos que atendem as zonas norte e oeste (http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2014-01-16/onibus-com-ar-condicionado-so-na-rota-para-o-mar.html). Isto numa cidade em que o preço da tarifa de todas as regiões é padronizado!

Então, como já se esperava, os protestos voltaram, mas com um perfil bem diferente dos do ano passado. O Movimento Passe Livre não deu as caras, está preferindo organizar debates para discutir a estrutura viária de São Paulo. Os “coxinhas” também não, e penso que a ausência dos dois grupos está relacionada. Num país com escassa tradição de participação política, a importância do ativismo é sistematicamente subestimada. Em junho, a relevância do MPL foi ridicularizada na mídia: “Quantas pessoas esse grupo consegue reunir para uma reunião? 6? 8?”

Sem dúvida, é provável que muito mais gente que estava nas ruas acreditasse em “abaixo a corrupção” do que em “passe livre”. O detalhe é que o pessoal que estava cantando “abaixo a corrupção” podia estar disposto a ir a uma manifestação, mas não estava disposto a organizar uma manifestação. Organizar dá muito trabalho. Quem já preparou uma festa para umas poucas centenas de pessoas, sem ter certeza de que pelo menos 50% dos convidados iriam, pode imaginar a dificuldade que é organizar um evento que reúna centenas de milhares de brasileiros unidos por uma causa, cercados pela polícia, sem oferecer comes e bebes.

Esse pessoal do MPL passou 10 anos na obscuridade, fazendo reuniões em salas vazias, com pautas que deviam parecer fora da realidade, sem ganhar nenhuma vantagem pessoal com isso, até que uma faísca, miraculosamente, se acendeu. Tamanha dedicação não é para muitos. É difícil para frequentadores recreativos de passeatas entenderem, mas sem esse tipo de gente por trás, as coisas simplesmente não acontecem. A internet, ao contrário do que se tem dito, não faz milagre.

Assim, quem tomou as ruas dessa vez foi outro tipo de ativista aplicado, os black blocs. E estes, sem entrar no mérito, não contam com a simpatia de ninguém. Para aumentar o azar, arrumaram um cadáver, e não foi o de um leiteiro qualquer, mas o de um cinegrafista de uma rede de televisão (o de um bebê não seria mais trágico).

De modo que a morte de Santiago Andrade foi tratada como uma espécie de “11 de Setembro brasileiro”, e o rapaz que soltou o rojão como um “Bin Laden brasileiro” ou coisa pior – Xico Sá, na Folha, tentou ser mais profundo e o transformou num “Raskólnikov brasileiro” (http://xicosa.blogfolha.uol.com.br/2014/02/13/carta-ao-raskolnikov-brasileiro/). Seu advogado está sendo usado por uns e esfolado vivo por outros, e até o governador Sérgio Cabral, que parecia morto em 2013, com enterro marcado para as próximas eleições, está tentando sair do caixão com essa história.

O infortúnio serviu inclusive para unir o governo, que teme que qualquer agitação durante a Copa possa atrapalhar a reeleição de Dilma, à oposição de direita, que quer bajular a imprensa e tem alergia a povo na rua. A Época, semanário da Globo, já decidiu, em reportagem de capa: “Basta!” A histeria pode chegar ao ponto de uma “lei antiterrorismo” ser votada em regime de urgência no Congresso. Ou seja, parece que vai ter Copa, e que os protestos, afinal, saíram de moda.

No fundo, a possibilidade de uma nova onda de passeatas durante a Copa do Mundo sempre oscilou entre a improbabilidade de dois raios caírem duas vezes no mesmo lugar e a probabilidade de muitas pessoas repetirem uma tática que já deu certo antes.

Pessoalmente, aposto em protestos pequenos, incapazes de parar o Brasil e que nem de longe lembrarão 2013 – alguns com uma pauta vaga contra o governo e a Copa; outros violentos e com uma pauta ainda mais vaga. Devem reunir poucas pessoas; a repercussão que terão dependerá mais da mídia que deles próprios.

Só acho que o governo comete um erro tático quando seus porta-vozes antagonizam em excesso com os manifestantes. Não tanto por jogar a população contra os black blocs, o que é fácil. Mas porque pode despertar a revolta de um tipo de ativista organizado que existe em pequeno número, porém tem pertinácia suficiente para levar multidões para as ruas.