Noves fora a passagem dos 20 anos de morte de Ayrton Senna e a campanha insidiosa e implacável que alguns setores da imprensa movem contra a Petrobras, o assunto de maior destaque nos últimos dias foram dois episódios de racismo no mundo do esporte e suas consequências.
O primeiro foi com o dono do Los Angeles Clippers, da NBA, Donald Sterling. Vazaram gravações telefônicas de uma conversa entre ele e a sua namorada, onde ele reclamava de uma foto que ela tirara com o grande ex-jogador Magic Johnson e dizia mais ou menos o seguinte: “tenha amigos negros, mas não os mostre, nem os traga ao ginásio para torcer”.
No segundo, uma banana foi atirada na direção do jogador da seleção brasileira Daniel Alves em partida de sua equipe na Espanha, o Barcelona, contra o Villareal. Em reação inspirada, o jogador descascou a fruta e comeu antes de bater o escanteio.
Acho que não preciso condenar aqui o racismo. Já escrevi outro artigo anteriormente sobre o assunto. O que quero chamar a atenção do leitor é ao desdobramento das situações decorrentes dos dois casos.
No caso americano, ocorrido diga-se de passagem em um esporte cuja maioria dos atletas e dos grandes gênios é negra, o repúdio foi imediato. Os jogadores do próprio Clippers (envolvido na disputa da fase final do campeonato) protestaram colocando as camisas do avesso (foto) e utilizando-se de meias pretas. O técnico e manager da equipe Doc Rivers (negro) ameaçou deixar o cargo e outros times aderiram ao protesto das meias negras.
Além disso, os jogadores estavam preparando uma greve caso a solução para o caso não os agradasse. Entretanto, não houve necessidade: a direção geral da liga de basquete americana puniu Sterling com o banimento da liga – ou seja, ele não poderá frequentar as quadras/ginásios, reuniões de donos de equipes ou quaisquer eventos referentes à liga. Além disso, foi multado em US$2,5 milhões e, o mais importante: será forçado a vender seu time à administração da liga quando a temporada se encerrar.
O fato gerou uma campanha das próprias equipes, como o leitor pode ver na imagem abaixo.
Na Espanha – cujo caso com o jogador brasileiro não é o primeiro, aliás – o clube Villareal identificou o torcedor, cancelou o seu carnê de ingressos anual e o baniu do estádio. Adicionalmente, o torcedor está preso no momento em que escrevo e pode pegar uma pena de até três anos de reclusão.
Fazendo um parêntese, impressiona a diferença entre a NBA e a Fifa, que vem “varrendo para debaixo do tapete” inúmeros episódios de racismo em estádios. Sterling foi punido mesmo sendo um bilionário do setor imobiliário – e já pesavam há tempos denúncias afins na sua atuação como empresário.
Ou seja: ainda que com ressalvas, a reação aos episódios nos Estados Unidos e na Espanha pode ser considerada adequada.
O curioso – ou o hipócrita, dependendo do ângulo de visão – foram as reações no Brasil ao ocorrido com Daniel Alves. Imediatamente o jogador Neymar postou na sua conta em uma rede social uma foto sua comendo uma banana e seu filho com a fruta de pelúcia, com a hashtag #somostodosmacacos.
No início, todo mundo elogiou, mas logo depois se soube que era uma ação de marketing em jogada conjunta entre uma agência de publicidade e o pai do jogador. Muitos repetiram fotos segurando uma banana e com a mesma hashtag, incluindo o apresentador Luciano Huck e sua esposa, a também apresentadora Angélica.
Já seria insólito o apresentador entrar nesta onda. Afinal de contas, pilota um programa televisivo calcado no assistencialismo enquanto é filiado a um partido político que prega abertamente a redução de salários e o fim dos programas sociais. Pertence e reproduz o discurso de parte da elite que o racismo “não existe no Brasil”.
Mas teve mais. No dia seguinte sua loja virtual começou a vender uma camiseta (alto do post) com a hashtag em questão, cobrando R$67. Repetindo o que já ocorrera quando das enchentes em Friburgo – quando fez uma promoção teoricamente “beneficente” para ajudar as vítimas, mas na verdade o grosso do lucro era seu – se aproveitou de uma situação séria para lucrar em cima.
O leitor pode alegar que “o capitalismo é assim”. Ok. Entretanto, ganhar dinheiro em cima de uma situação que provavelmente sequer o preocupa efetivamente, a meu juízo, chama-se hipocrisia. Como também é explorar a imagem de pobres em rede nacional – sem gastar um tostão, tudo permutas de publicidade de empresas – e defender na vida privada uma política que aumenta a pobreza e a concentração de renda.
Estou me utilizando do exemplo do apresentador por ser uma pessoa pública, mas esta foi uma atitude que muitas pessoas tomaram, nem que seja tirar uma foto com a fruta em questão e compartilhar. O problema é que ao mesmo tempo em suas vidas privadas advogam que não há racismo no Brasil e que o lugar do negro na sociedade é o ocupado anteriormente. Ainda se utilizam do surrado bordão “tenho até um amigo negro” para se defender da acusação de racismo.
Fazendo a ressalva que nem todos os contrários a este política pensam desta forma, foi curioso ver gente que é contra políticas de ação afirmativa para os negros por puro racismo e/ou preconceito compartilhando fotos com a hashtag. Pode-se avaliar a melhoria ou não destes processos – pessoalmente, um programa por renda seria mais abrangente, até porque infelizmente os negros são maioria esmagadora entre os mais pobres – mas defender o quadro atual como “justo” me parece, ao menos, uma tremenda demonstração de insensibilidade social.
Ou, como escrevi tanto no Facebook como no Twitter, compartilha foto com a hashtag mas chama os torcedores do Flamengo, por exemplo, de “pobres”, favelados” e “ladrões”. Leitor, você pode não saber, mas este tipo de coisa é uma demonstração cristalina de hipocrisia. Muito bonito aderir a campanhas – publicitárias, neste caso em especial – contra a discriminação, mas não adianta nada se, ainda que inconscientemente, se discrimina o tempo todo em nossa conduta pessoal. A ação é mais importante que o discurso.
Fazendo um segundo parêntese, vale lembrar que a linha imposta por seu chefão ao jornalismo da Globo é de que “não existe racismo no Brasil” – alvo inclusive de um livro do sujeito sobre o tema. Então a emissora é contra as cotas, é contra políticas sociais (sejam quais forem) e mesmo em sua teledramaturgia os papéis de destaque negros são minoria – apesar de algum esforço recente no sentido contrário que, ironicamente, na maioria dos casos inclui personagens que são negros apenas na cor. Acaba sendo um desserviço à causa ao incutir a ideia de que tudo isto é “normal” – quando não é.
Ou, fazendo um segundo parêntese, a novela do SBT “Chiquititas”. A novela se passa em um orfanato e, pasmem: não tem uma criança negra, apenas uma mulata. Mesmo ressalvando que a história original se passa na Argentina, até o orfanato na televisão não tem negros!
Longe de, aqui, tentar ditar qual é a melhor forma de combater o problema – até porque sou branco e não sinto na pele o problema. Na verdade, este blog nem é um bom exemplo, haja visto que temos apenas três colunistas negros no universo dos autores. Mas o movimento negro é que deve liderar esta briga, que é de todos nós e é diária em ações, atitudes e práticas.
Contudo, o episódio de hipocrisia dado pela sociedade – e que reflete um fenômeno que é generalizado – neste caso não ajuda em nada a combater o problema. Na prática, nos comportamos como uma gigantesca “República de Bananas” no episódio, com o perdão do trocadilho.
Imagens: NBA.com (Clippers) e reprodução de redes sociais
Concordo com quase tudo, mas se fazem uma novela em que todas as crianças do orfanato são negras, é preconceito porque estão sugerindo que só negros são órfãos. Se fazem uma sem negros, é preconceito sabe se lá porque. Aí complica.
Migãozinho, lógico que fiz uma provocação, mas temos dois preconceitos cruzados: uma tv sem negros mesmo que representando papéis que na sociedade são majoritariamente pertencentes a negros – infelizmente. No caso da novela o primeiro me parece mais forte que o segundo.
Só faria uma ressalva quanto a Espanha: a atitude do Villarreal é rara no universo do futebol espanhol. Normalmente, nada é feito e os clubes/jogadores, quando envolvidos em casos de racismo, tomam multas irrisórias, isso quando são punidos – situação que se estende por toda a Europa. O caso do Villarreal é uma exceção e não regra.
Menciono isso de leve no artigo, mas você tem razão