“Quatro minutos de jogo da final da Copa do Mundo da FIFA. Jogando em casa, a Suécia marca 1 a 0 sobre o Brasil com Nils Liedholm. No momento em que a bola para junto à rede, o brasileiro Didi vai até dentro do gol e a agarra com as duas mãos. Coloca-a debaixo do braço e caminha em direção ao meio-campo. Não corre ou trota, como quem quer ganhar tempo para buscar o empate; pelo contrário: caminha, deliberadamente lento, para levar a bola até o círculo central do estádio Rasunda, em Solna.”

Este parágrafo inicial é tirado do site oficial da Fifa, na seção dos grandes craques, na página do Didi. E mostra muito do que foi – e principalmente do que não foi – o Brasil na Copa de 2014. Voltemos ao Didi daqui a pouco.

As redes sociais refletem a grande decepção que foi a derrota por 7×1 para a Alemanha na semifinal da Copa. As palavras vergonha e vexame foram muito usadas. Eu compreendo quem as use. Mas não concordo.

O Brasil já teve seus motivos históricos para se envergonhar. Vergonha é o nosso passado escravagista. Vexame é ter o maior fosso social do mundo, os maiores níveis de desigualdade. Este tipo de coisa é de envergonhar uma Nação. E o Brasil nem tem o monopólio disso: somos tímidos amadores. Nossas grandes vergonhas foram cometidas contra nós mesmos.

Brasil e Alemanha 5Nossos dignos adversários desta terça-feira – nada pessoal, é só um exemplo próximo – têm contas muito mais pesadas a acertar com a História. Provocaram duas guerras mundiais, o maior genocídio de todos, queimaram gente em fornos. Isso sim é vergonha nacional, isso fica para sempre, o resto é fichinha.

Nesse ponto, o caro leitor vai querer me lembrar de que se trataria de uma vergonha no campo esportivo. Ok, isso já traz a questão para um âmbito muito menor. Menor que o clima de desolação que se abate com o peso de um 7×1 porque, afinal, é só um jogo. Lembra?

Pois então, neste muitíssimo menos importante mundo dos esportes, também não foi vergonha. Vergonha é a FIFA ter chegado aqui com a banca de ser “padrão” de qualidade e sair com seus parceiros e dirigentes presos por envolvimento com uma máfia internacional de cambistas. Vexame teria sido o Brasil não entregar a Copa (obras, estruturas, organização) conforme prometido. Envergonhado eu estaria se tivesse a mínima chance de estarem certos os agourentos “especialistas” da nossa imprensa que diziam horrores do País e da capacidade de fazer o evento. Vergonha é o que faltou na cara dessa gente, primeiro de falar tanta bobagem para denegrir o próprio País, depois por não reconhecer que errou a previsão.

Vexame são uns poucos rubro-negros que não entenderam a brincadeira e comemoraram a vitória de um time que jogava de preto e vermelho. Indignos em sua profunda ignorância da grandeza do C.R.Flamengo, de sua ligação com o Brasil, com a popularização do futebol brasileiro, com a identidade nacional. Que torçam para o Vitória da Bahia, ou o Sport de Recife, se sua paixão é movida pelas cores.

Brasil e Alemanha 6Vergonha é fazer como alguns playboyzinhos da Vila Madalena que queimaram a bandeira do Brasil. Ou como rebeldes sem causa da periferia que queimaram ônibus. Vexame esportivo é a torcida de Belo Horizonte ter vaiado o hino do Chile outro dia e agora ter gritado olé quando a Alemanha vencia de goleada. Vergonha é deixar o estádio no intervalo, não é mesmo?

Vexame é achar que torcer seja cantar esta musiquinha ridícula de “eu sou brasileiro, com muito orgulho etc etc etc.”, que não empolga ninguém, mas era o que tínhamos, e que se calou na hora da derrota. Ou a Globo fazendo média com este tipo de torcedor no final da transmissão. Fico corado de vergonha.

E então você pode querer me lembrar que o tal vexame do que tantos falam seria apenas referente ao que se passou dentro de campo. Excelente, porque vamos juntos no mesmo caminho, e é exatamente o que eu estou querendo mostrar. Reduzimos muita a questão, porque saímos de uma área territorial de milhões de quilômetros quadrados para um pequeno retângulo de 105x68m. Isso começa a colocar as coisas em seu devido lugar.

Ainda assim, não concordo que tenha sido vergonha ou vexame. Vergonha seria tentar melar o jogo, apelar para a violência, dar bicões, provocar, brigar, cavar expulsões, fazer cai-cai. O futebol está cheio de exemplos de vexames deste tipo, e algumas seleções sul-americanas já passaram por isso.

Brasil e Alemanha 7O Brasil também não foi um time entregue, sem ânimo, sem garra, sem vida, que foi levando o jogo de maneira apática à medida que os gols saíam. Isso seria vexatório, mas não foi esse o painel do jogo. A derrota, sim, foi desenhada ao longo de toda a partida; mas a diferença expressiva no placar se deu em 6 minutos.

Portanto, em minha opinião, não foi vergonha ou vexame. Foi um desastre total. Um desastre, dentro dos limites que as quatro linhas de um campo de futebol podem dar a esta palavra. E um desastre anunciado.

As razões para a derrota já haviam sido discutidas previamente aqui na Sobretudo. Ou, melhor, as perspectivas de derrota ou vitória, a depender das opções que fossem feitas. Felipão fez exatamente as opções que foram apontadas aqui – e por muitos outros analistas – como aquelas que levariam à derrota.

Em 1º de julho, o Ouro de Tolo publicou minha opinião sobre o posicionamento tático do time. (http://www.pedromigao.com.br/ourodetolo/2014/07/brasil-uma-questao-de-posicionamento-em-campo/) Deixo claro que não era uma visão unicamente pessoal, mas que eu ali concordava com algumas vozes da imprensa esportiva. Tentei comparar a equipe que venceu a Copa das Confederações com a atual e explicar por que, sendo exatamente iguais, se comportavam de forma tão diferente. E por que Felipão deveria consertar o estrago abrindo mão de um terceiro atacante em troca de um reforço no meio de campo.

brasil e alemanha 2Quatro dias (e um jogo) depois , já sabendo do desfalque de Neymar para a semifinal, foi publicada uma coluna (http://www.pedromigao.com.br/ourodetolo/2014/07/sobretudo-a-hora-de-separar-os-homens-dos-meninos/) na qual eu comento os efeitos desta situação, e o que poderíamos fazer a partir de então, principalmente em relação ao equilíbrio emocional do time.

O despreparo psicológico da seleção brasileira, a maneira como nunca soube lidar com a pressão, a expectativa e a responsabilidade de jogar uma Copa dentro de casa, se já não estavam óbvios até a semifinal, ficaram escancarados entre o 20º e o 30º minuto da partida diante da Alemanha. Se a falta de Neymar agravou ou não este quadro, é inútil conjecturar. Entretanto, qualquer argumento positivo que poderia ser usado na ausência do principal jogador (força e união da equipe, diminuição da pressão e obrigação da vitória etc.) parece ter surtido efeito contrário. Também a possibilidade de mudar a maneira de jogar, uma vez que Neymar não estaria em campo, foi igualmente desperdiçada pelo técnico e sua ultrapassada comissão. Por mais que tantos tivessem dito o mesmo que as colunas aqui publicadas.

Felipão colocou Bernard na vaga de Neymar, a pior dentre as opções que tinha. Perdeu o jogo antes de cantarem o hino. E não vai aqui nenhuma crítica pessoal ao bom jogador que o Bernard é. Apesar de inexperiente, franzino e longe de sua melhor fase técnica. Entrou mal na partida, mas não é culpa dele. É impossível tentar substituir Neymar colocando um jogador comum para realizar o mesmo papel, com o time jogando em função de uma peça que não estaria no tabuleiro. Teria sido caso de substituir não apenas o jogador, mas a maneira de jogar, congestionando o meio e dificultando o estilo de toques rápidos da Alemanha.

Brasil e Alemanha 3Quanto às outras substituições, Felipão errou também. A entrada de Dante fez David Luiz mudar-se para o lado direito da defesa. Os dois pareciam perdidos, batendo cabeça, sem posicionamento, sem treino. Depois de já terem jogado juntos algumas vezes, depois de um mês e tanto de treinamento na Granja, Dante não estava preparado para substituir Thiago Silva (que estava suspenso por tomar um cartão infantil). E a culpa claramente não era de Dante, nem de David Luiz, mas do sistema de treinamento da zaga.

Na volta de Luiz Gustavo ao time, outro erro. Felipão tinha quatro opções: não promover o retorno do jogador, já que a dupla Fernandinho-Paulinho tinha se acertado na partida contra a Colômbia; deixar os três juntos fechando o meio e, neste caso, não entrar com Bernard; tirar Fernandinho do time, já que Paulinho vinha recuperando o ritmo de jogo, mostrava-se mais equilibrado emocionalmente e era o mais experiente dos três; tirar Paulinho do time, a pior opção, e foi o que fez o técnico. Todos os cinco gols do primeiro tempo saíram de falhas de posicionamento da dupla de volantes, dois deles em falhas individuais de Fernandinho.

O quarto erro fatal de Felipão na escalação inicial foi insistir com Fred, completamente inoperante a Copa inteira. Mesmo considerando a dificuldade do time em fazer a bola chegar ao ataque, Fred não se ajudou ao ser passivo, esperar a bola na sobra do possível erro da zaga, não lutar pela bola, não se antecipar, escorar ou proteger a bola, enfim, não fazer o be-a-bá do centroavante fixo durante seis partidas. O gol que fez no amistoso contra Sérvia às vésperas da Copa, concluindo depois do furo do zagueiro, pareceu lhe dar a certeza de que outros tantos defensores cometeriam falhas semelhantes, e ele se consagraria esperando estes erros a Copa inteira. Com Jô sendo uma opção ainda pior, Felipão recusou-se a testar Hulk na função de atacante centralizado. Hulk, que fez também uma péssima Copa, mas que ao menos foi exemplo de entrega e esforço, oferecia mais perigo ao adversário.

Felipão errou também ao não perceber – ou perceber tarde demais – a pane que acometeu seus atletas depois de levarem o segundo gol. Um técnico zeloso, na impossibilidade de “pedir tempo”, mandaria alguém parar a partida, reposicionar a equipe, tomar fôlego e colocar a cabeça no lugar. Errou ao não preparar um jogador capaz de, de dentro de campo, fazer como Didi na cena clássica da final de 1958 que abre este texto.

A derrota veio pela falta de um técnico e onze jogadores. A goleada, pela falta que fez um Didi.

Veio o intervalo e Felipão – conforme declarou na coletiva – explicou ao time que a derrota era irreversível. Nas eliminatórias, a Suécia (que nem se classificou para a Copa), jogando em Berlim, tomava de quatro da mesma Alemanha no primeiro tempo, e chegou ao empate. Felipão, jogando em casa, considerou o jogo já perdido. Preparou sua equipe para uma derrota digna.

Brasil e Alemanha 8Novamente, trocou errado. Tirou Hulk, que estava mal, e deixou Fred, que esteve pior o tempo todo. Com isso, perdeu a única opção que poderia ter de alterar a forma de jogar do ataque, sem um centroavante fixo. Quando tirou Fred mais tarde, ficou sem atacante algum.

Felipão colocou seu time a perder por presunção, arrogância e teimosia. Mesmo alertado, achou que poderia acuar a Alemanha jogando para cima dela, como se o Brasil fosse mais time, mesmo sem Neymar. Enquanto Argélia, Estados Unidos e Gana conseguiram resultados bem melhores exatamente por reconhecerem a força do time alemão e armarem suas equipes para não deixá-lo jogar.

Em meio a tantos erros táticos, é difícil julgar individualmente os jogadores. Nenhum deles tem personalidade e leitura de jogo para colocar a bola debaixo do braço e ajeitar o time. Isso é desestimulado. No Brasil, os atletas são formados para serem pecinhas nas mãos de técnicos tiranos, cumprir funções sem perceber o jogo como um todo, incapazes de contribuir com inteligência, visão. Jogadores assim não são tolerados, desde as categorias de base. E, com robozinhos aplicados em campo, não é de se admirar que tenha faltado um Didi, alguém que tivesse caminhado lentamente com a bola debaixo do braço e rearrumado o time.

Em vez disso, afobação e pressa foram mais uma vez confundidos com raça e entrega. O Brasil foi guerreiro, talvez até além da conta. Avenidas se formaram pelo avanço desordenado dos laterais e de David Luiz. O Brasil parecia um boxeador desnorteado dando socos a esmo, ao vento, mas que recusava-se a cair em knock-out. Ia à lona, ouvia a contagem até 9, levantava e apanhava mais. Não faltou raça, vibração, foco, trabalho, vontade, entrega, dedicação. Seria injusto dizer que faltou. Se faltasse, aí sim eu diria que foi vergonhoso. Mas faltou competência e cabeça, isso faltou sim.

Muita gente dizia estar torcendo pela seleção e saltou do barco, como ratos em fuga. Isso sim é vergonhoso. Antes mesmo do jogo acabar, já tentavam faturar em cima da derrota. Vexame.

Nem estou falando de algumas piadas de sorriso amarelo, brincadeiras típicas de redes sociais. Estas, ao menos, têm a função de descarregar o ambiente, dissimular a frustração. É só um modo (inteligente) de absorver o impacto, de dizermos para nós mesmos que é só um jogo.

No fundo, saber lidar com a própria desgraça é sabedoria, e nos fará recobrar o orgulho de estarmos realizando (ainda, porque não acabou) a Copa das Copas. A imprensa do mundo todo, os turistas que passaram por aqui, dizendo aos quatro cantos que realizamos a melhor de todas as Copas, dentro e fora de campo. Demos um show de competência, eficiência, hospitalidade, simpatia, esportividade. Estádios, transporte, segurança, hotelaria, infraestrutura, tudo funcionou como deveria. Não é um desastre dentro de campo que vai embotar o sucesso absoluto fora dele. Nós sabemos separar as coisas, nós sabemos que, como povo, como País, fomos vencedores.

Mas teve gente que nem esperou o apito final para tentar dar contornos sociológicos para “explicar” a derrota, para politizar o momento, para tentar faturar em cima do desastre esportivo. William Waack, mais alemão que brasileiro, para não perder seu momento de júbilo, abriu o Jornal da Globo lendo um editorial lastimável, repugnante, oportunista e abjeto.

Gente como ele sim, são uma vergonha para todos nós.

Imagens: Fifa.com