O título da coluna de hoje é um neologismo utilizado por um antigo professor meu. Eu já explico o significado. Mas deixe-me introduzir o assunto primeiro.
Não há no Brasil a tradição de discutir política fora de épocas eleitorais. Pode até parecer estranho aos desavisados que em alguns países a política faça parte do cotidiano das mais diferentes pessoas, independente de classe, culto, sexo ou preferências. Europeus, em geral, são mais próximos do debate cotidiano, notadamente italianos. Nossos vizinhos argentinos também convivem com a política em seus cafés, bares, restaurantes, livrarias, universidades etc.
Isso não garante qualidade na hora de votar. Ainda que a noção de qualidade seja bastante subjetiva neste caso, é preciso reconhecer que o sistema político italiano, com uma instabilidade única nas chamadas democracias maduras, trocas constantes de gabinete, figuras caricatas como Berlusconi, é uma tremenda bagunça. E que a alternância entre peronistas de direita e esquerda na Argentina é um exotismo que não dá muita respeitabilidade ao modelo deles.
O debate constante também não garante uma blindagem para manobras baixas ou demagogia. Mas pelo menos ergue uma pequena barreira de proteção contra golpes midiáticos de quinta categoria.
O cidadão que debate política no seu cotidiano acaba formando opinião sobre os grandes temas nacionais e até universais, sem fulanização. Este posicionamento é construído fora do calor das disputas eleitorais, protegido da paixão causada pela proximidade das urnas. Quem vive a política em doses homeopáticas diárias é mais consciente de seu modo de pensar a vida, daquilo que, ao fim, é chamado de ideologia: o conjunto de valores individuais, ou de um grupo, que dá curso ao seu pensar e à sua ação.
O eleitor resultante deste caldo é menos manipulável pelo efêmero, pelo pontual, pelo truque de comunicação, pela notícia plantada, pela forma, pelo novidadeiro vazio, pelo individual-voluntarioso, pelo simbólico, pelo grotesco, pelo modismo, pelo aparente, pelo melodramático, pelo escândalo de ocasião. Ele sabe o que quer, é regido por uma matriz mais ou menos flexível, analisa o momento por um prisma pessoal e intransferível. Erra e acerta, e muda, como qualquer outro, mas tem um padrão, um modelo mental a que se dispõe seguir.
Pergunte-se para um argentino como ele é politicamente, ele pode responder que é justicialista ou radical da mesma forma que responderia que é Boca ou River, se a pergunta fosse sobre futebol. Um italiano pode ser socialista, democrata-cristão, comunista, social-democrata ou um zilhão de outras possibilidades no pitoresco caleidoscópio ideológico local. Isso não significa rigidez, imutabilidade, porque reflete uma tendência de cada um, não necessariamente uma certeza eterna.
A imprensa também se pauta por uma agenda mais previsível e transparente à medida que os veículos de comunicação representam também maneiras distintas de ver o mundo, e isso está claro em suas linhas editoriais, isso quando não são explicitamente filiados a partidos ou entidades de classe.
Portanto, o eleitor faz seus julgamentos a respeito dos fatos a partir de um ponto de observação predeterminado, que é seu conhecido, num processo um pouco mais refletido. Em geral, ele sabe, por observação, que o noticiário é direcionado pela tendência ideológica do veículo. Sabe que o fato não é absoluto, mas a versão que se dá a ele, a oportunidade em que ele é selecionado como pertinente ou não, a ênfase. O comentário não vem embutido na notícia, é feito à parte quando o leitor ou espectador, sabe-se, não é Hommer Simpson, senão que alguém capaz de distinguir intenções por detrás da notícia.
Nem num ambiente assim, como já foi dito, há um mundo perfeito, imune a erros, avaliações precipitadas e simulacros. Mas há uma tendência de que parte dos eleitores – pelo menos – perceba claramente a trucagem, a manipulação e o golpismo.
Voltando ao título da coluna: na definição do meu antigo professor, hidrobideísmo seria o mal que acomete o adulto que, na mais tenra infância, tenha tido o costume de beber a água residual do bidê. Hidro-bidê-ísmo, ou seja, o efeito de comer fezes na cabeça do cidadão.
Não há outra forma de explicar que um cidadão leia, a poucas semanas da eleição, a capa atual da revista Veja e tenha qualquer outra sensação que não seja de repulsa e nojo pela edição.
O fato gerador da celeuma: um ex-diretor da Petrobras, demitido e posto sob investigação por decisão da Presidenta Dilma, se vê beneficiário da delação premiada e, trocando uma pena certa de mais de 30 anos de prisão por uma condicional de um ano, denuncia um suposto grande esquema de corrupção que envolve todos os principais partidos da base aliada do governo, além do seu atual principal concorrente.
Enfim, entre os que têm alguma chance presidencial, sobram imunes à acusação apenas o PSDB e seu candidato Aécio. O depoimento teria sido dado em sigilo de justiça, mas foi vazado (mais uma vez, o método se repete) apenas para a revista Veja. Que – ora, quanta coincidência! – apóia exatamente o candidato Aécio.
Os leitores de Veja podem fazer disso alguma coisa mais robusta, mas os leitores de Veja, convenhamos, merecem exatamente aquilo que recebem da Editora Abril. E não há o que mudar ou convencer: são almas perdidas.
O grande truque começa sempre pela edição do Jornal Nacional que acontece em sequência. Sendo um telejornal, tendo um editor que fala abertamente que seu expectador tem a inteligência média do Hommer Simpson, o JN passa a tratar o assunto escandaloso com a gravidade devida, mas com a profundidade e reflexão tão rasteira quanto possível. Tudo é retumbante, nada é detalhe. E Deus e o diabo, sabemos, lutam sua eterna guerra nos detalhes, não nos efeitos especiais.
Ninguém refletirá que, descoberto e demitido, o tal diretorzinho pode estar movido pelo sentimento de vingança contra Dilma e os seus. Ninguém estranhará que a investigação tenha respingado também em Marina Silva e seu partido, e também na memória do quase-recém-santificado Eduardo Campos. Ninguém pedirá provas. Ninguém questionará a credibilidade de um delator que, afinal de contas, é um criminoso pego no contrapé. Ninguém pensará que, se houve um sem-número de corruptos, há um sem número ao quadrado de corruptores sempre eternamente impunes.
Ninguém lembrará que, sendo os corruptores quase todos privados, não é a condição de empresa pública que faz da Petrobrás (ou qualquer outra) presa fácil deste tipo de esquema; ao contrário, no universo das empresas privadas, o crime corre mais solto e, como são privadas, há menos investigações, e nem por isso menos danos ao interesse da sociedade.
Ninguém questionará que, por magia, o maior partido de oposição, campeoníssimo em número de impugnados pelo TSE baseados na ficha suja, esteja totalmente limpo nesta delação. Ninguém cobrará que outras investigações, de mesmo porte, mas contra os políticos protegidos pela imprensa, tenham ficado para trás, sempre soterradas por denúncias contra-ataque. Ninguém se perguntará por que estes casos escabrosos sempre são revelados às vésperas de eleições, nem os interesses ocultos de quem os revela.
Ninguém pedirá investigação sobre a investigação, que ocorre em segredo de justiça, e foi vazada para a Veja mais uma vez, como se o que a Veja e alguém de dentro da Polícia Federal estivessem fazendo também não fosse um crime e um escândalo. Ninguém questionará a credibilidade de uma Polícia Federal ou – vá lá – um delegado e uma equipe de investigação que vaza deliberadamente para a imprensa um processo em sigilo.
Parafraseando Wellington, o Duque de Ferro que derrotou Napoleão em Waterloo, “quem acredita nisso, acredita em qualquer coisa”.
Imagens: Veja e Petrobras