Os amantes de automobilismo, como eu, ainda estão chocados com o gravíssimo acidente sofrido pelo piloto Jules Bianchi no último GP do Japão de Fórmula 1. Não irei entrar na sucessão de erros que geraram o acidente, que será abordada pelo nosso Editor Adjunto e jornalista especializado em automobilismo Fred Sabino, mas quero entrar em outra seara: a das decisões difíceis.
Para quem não viu o acidente, o jovem (25 anos) piloto bateu em um trator, que fazia o resgate de outro piloto, acidentado uma volta antes. A pancada, a pouco mais de 200 quilômetros por hora, foi tão forte que arrancou a parte de cima de sua Marussia, e o piloto só não foi degolado porque o impacto da frente do carro levantou o trator de forma a permitir que o carro passasse por baixo.
Parêntese: ontem, aliás, completou-se 40 anos da morte do piloto austríaco Helmut Koinnig, degolado por um guard rail no GP dos Estados Unidos em acidente de dinâmica semelhante ao de Bianchi. Fecha o parêntese.
Imaginou-se logo que, com a pancada brutal recebida na cabeça, o piloto tivesse sofrido fraturas no crânio. Leitor desta revista eletrônica, bombeiro especializado em resgates afirmou ter ficado incrédulo que o promissor francês, cotado para ocupar um cockpit na Ferrari a médio prazo, tivesse sobrevivido.
Aí talvez esteja a única notícia boa de todo este episódio: Bianchi não sofreu qualquer fratura de crânio, ou seja, o conjunto de capacete e Hans (proteção para o pescoço) mostrou-se extremamente eficiente. O problema foi a desaceleração.
O piloto foi submetido a uma força de 50G (medida da força da gravidade) durante a batida, causando uma desaceleração brutal. Com isso o cérebro do piloto ficou “chacoalhando” dentro do crânio, o que causou o que os médicos chamam de LAD – lesão axonal difusa. Tentando traduzir para os leitores leigos como eu, é como se diversas células nervosas, os neurônios, parassem de funcionar – de forma definitiva, sem regeneração.
O prognóstico é cruel: mais de 90% dos acometidos por esta lesão passam a levar vida vegetativa, e os 10% restantes sequelas que impossibilitam uma vida minimamente normal, ainda que com restrições. Na prática, o piloto francês está “morto”, condenado a uma cama de hospital enquanto seu coração bater.
Neste ponto que quero chegar. Até que ponto vale a pena para Bianchi e sua família ser mantido indefinidamente em uma UTI de hospital sabendo-se que não há a menor possibilidade de recuperação, sequer de melhora?
No caso específico do piloto, ainda há outra questão. Está em um país estranho, longe de sua terra natal e não sei se há condições de remoção – mesmo que em uma UTI móvel – para a França. Ou seja, há a possibilidade – escrevo em tese – de ficar amarrado a uma cama de hospital indefinidamente e sem condições nem de ter a família por perto.
Este é um caso típico de uma decisão extrema – e dificílima – que a família precisa tomar. Manter Bianchi indefinidamente vivo com ajuda de aparelhos esperando uma melhora que em 99,999999999% dos casos não virá, ou desligar os aparelhos e encerrar tudo de uma vez? Para o piloto, teoricamente não há a menor diferença, pois ele está inconsciente, em coma profundo.
Parêntese 2: estou me restringindo à análise técnica, não religiosa, sem levar em conta questões como espírito, alma ou coisas correlatas. Ressalvo que sou religioso.
Sendo bem frio, talvez tivesse sido melhor para todo mundo que Bianchi tivesse morrido imediatamente no acidente. Tentando olhar racionalmente – e isso é difícil, muito difícil, caros leitores – o sofrimento a ele e a seus familiares teria sido muito menor. Entram questões como apego, esperança de uma melhora – ainda que o prognóstico, como o caso, seja de vida vegetativa – e a perda da pessoa querida, ainda mais muito jovem e com um futuro brilhante pela frente.
Não falo em tese: passei anos atrás por uma situação envolvendo meu avô, que em 1996 sofreu um violento AVC e, embora, comesse, andasse e falasse normalmente, não tinha a menor noção do que se passava à sua volta em 99,9% do tempo – às vezes, muito às vezes, reconhecia minha avó e minha mãe. Essa situação durou oito anos – e mais alguns AVCs no caminho, gerando grande desgaste em minha avó, nas quatro filhas, irmãs, genros e netos.
Meu entendimento hoje – e de outras pessoas da família – e que talvez fosse melhor para todo mundo, e especialmente para ele, que não resistisse ao primeiro AVC. É uma situação menos grave, ele não estava preso a uma cama de hospital nem havia a possibilidade de uma “eutanásia”, mas, na prática, não estava vivo nem para ele nem para nós.
Em um caso como o de Bianchi, se precisa levar em conta o bem estar tanto do piloto como dos que estão à sua volta. Não conheço a legislação japonesa referente à eutanásia, mas é uma decisão difícil que se precisa tomar: se o quadro é irreversível, desligam-se os aparelhos que o mantém “vivo”?
Não é fácil.
Talvez eu tomasse esta decisão – e talvez gostaria que fizessem comigo caso, Deus queira que não aconteça, eu um dia me encontre em situação análoga e irreversível. O bem estar de Bianchi precisa ser visto em primeiro lugar. Sem contar na questão econômica envolvida, que é menor, muito menor, mas que pode tomar proporções vultosas em longas internações.
A verdade é que tomar decisões como esta e que envolvem vida e morte é extremamente difícil. É bastante complicado tomar decisões “racionais” quando há sentimentos envolvidos, quando há tragédias envolvidas e corações angustiados. Mais do que isso, é bastante complicado tomar uma atitude que implique em desistir de uma vida humana, ainda que esta vida, na prática, já não exista mais. E o ser humano, por definição, tende a não desistir da vida enquanto o coração bate.
Mas é uma reflexão que precisa ser feita, não somente pela família e pela namorada do piloto, como por todos nós. O que o leitor faria?