Tá rolando uma enquete interna aqui no Ouro de Tolo (OT) para escolher a melhor safra de sambas de enredo desde que eles começaram a ser gravados, o que remonta a tempos imemoriais quando nem eu, que sou veterano, era nascido.

Dada a minha condição leiga eu supostamente não deveria nem participar, mas como não resisto a uma enquete acabei dando o meu voto.

Acima de qualquer ano, 1976, que tem o samba da Império que a Marisa Monte gravou (“oguntê, marabô, caiala e sobá, oloxum, ynaiê, janaína e yemanjá”), tem o samba do Neguinho (“sonhar com filharada é o coelhinho, com gente teimosa na cabeça dá burrinho”), tem o samba cult da Em Cima da Hora (“os jagunços lutaram até o final, defendendo Canudos naquela guerra fatal”), tem o samba da Mangueira…

Lembrei também da Festa para um Rei Negro, do Salgueiro de 1971, provavelmente a música brasileira mais conhecida no exterior depois de Garota de Ipanema. Impossível não se emocionar vendo a torcida do Barcelona cantando “O Lê Lê O Lá Lá Ser de Barça Es Lo Mejor que Hi Ha”.

Nos anos 80 e 90 também lembro de uns sambas bacanas. O Jegue da Imperatriz, o Ita no Norte (“explode coração, é lindo o meu Salgueiro”), o Caymmi do Ivo Meirelles (“Bahia terra sagrada de Yemanjá e Iansã, Mangueira Supercampeã), Portela com Contos de Areia (“é Clara Guerreira”) e o samba do David Correa (“deixa-me encantar, com tudo teu, e revelar”), Festa Profana, imortalizado pela arquibancada (“confete e serpentina, vou dar porrada na torcida vascaína”)… Kizomba, Só da Lálá, Liberdade Liberdade Abre as Asas Sobre Nós…

Mas virou o século e eu não lembro de mais nenhum samba! Nenhum. Nem dos dois sambas que desfilei no Salgueiro, um deles, inclusive, campeão do Carnaval, eu consigo me lembrar. Eles se apagaram da minha memória.

Nos anos 70 e 80 os sambas tocavam nas rádios meses antes do Carnaval. Todo mundo conhecia os sambas mais pedidos pelos ouvintes. E era costume comprar o LP das Escolas de Samba. Cheguei a conhecer um gaiato que levou para Central do Brasil uma vitrola com alto falante para tocar os sambas das grandes escolas e vender um LP por menos da metade do preço das lojas. Só quando chegava em casa o incauto comprador se dava conta de que estava comprando os discos encalhados das escolas de Cabo Frio, mas o malandro desaparecia para sempre; fazia a féria em um único dia.

Nos anos 90 esse hábito foi diminuindo, mas os sambas ainda chegavam até nós. Só que tem quase 20 anos que os sambas se tornaram algo confinado aos redutos dos mais enfronhados nesse ambiente. A imensa maioria do público não está nem aí para o que as escolas produzem a cada ano e a música só é ouvida no dia dos desfiles (ou em pequenos intervalos na TV Globo, em anúncios que ninguém dá muita bola).

Para mim, a humilhação suprema e a comprovação definitiva deste afastamento do samba do público em geral aconteceu em 2013. A Vila Isabel foi campeã do Carnaval com um samba assinado por Arlindo Cruz, Martinho da Vila, seu filho Tunico da Vila e André Diniz – ou seja, haja grife. Como o André e o Tunico são rubro-negros para valer, o Tunico fez uma adaptação da letra para ser cantada na arquibancada, falava em Zico, em Nação, em tudo de bom que o Flamengo tem e ficou realmente bacana. Divulgaram para caramba, fizeram vídeo e o espalharam nas redes sociais, distribuíram a letra.

E, na hora “h”, a torcida do Flamengo resolveu cantar…Viva La Vida, do Coldplay!

Por que isso acontece? Sei lá! Só sei que as escolas de samba deveriam refletir, para começo de conversa, sobre o processo de escolha de suas músicas.

Três anos atrás um amigo me convidou para “assinar” um samba em uma escola famosa (não, não é o Salgueiro, tampouco a Portela dos amigos do OT). O que eu precisava fazer? Pagar! Eu aportaria uma polpuda contribuição em dinheiro para ajudar na divulgação do samba e assim, sem ter escrito uma linha ou composto um acorde, viraria compositor. Com direito a desfilar na ala respectiva da escola, com aquele terno decorado com a insígnia de um compositor que eu nunca fui.

Ouço falar em “escritórios” do samba, que são centrais de produção de sambas de compositores ocultos. Ouço falar em “pombos”, curiosa expressão que me ensinaram aqui no OT, uma versão sambista dos consagrados laranjas, ou seja, gente que se apresenta publicamente no lugar de outro, que não pode aparecer por razões quase sempre inconfessáveis. Ouço falar em pequenas fortunas empregadas no processo de escolha, assemelhando-se ao financiamento eleitoral. Ouço falar em manipulação deslavada, arbitrariedades de toda sorte, roubalheiras de corar frades de pedra.

Não é de se estranhar que em um ambiente com esse grau de degradação tudo fique menor e mais difícil de se ir além dele. A população, desconfio, não deixou de gostar de samba. As escolas de samba é que parecem não estar nem aí para os gostos da população e preferem produzir músicas para acomodar seus arranjos internos ou agradar unicamente seus adeptos mais fiéis.

Os quais, aliás, também parecem se ressentir desse momento. Afinal, na dita enquete aqui do OT, em meio a tantos experts, os sambas do passado aplicam uma goleada sobre os sambas desse milênio.

Só posso concluir que como fenômeno cultural e social, deixaram mesmo os sambas de enredo morrerem e acabarem, para desgosto da mangueirense Alcione. Hoje eles são apenas uma versão musical do Uirapuru, aquele pássaro de canto bonito, mas que só canta umas 15 vezes por ano e ainda assim para ouvi-lo é necessário ir ao seu habitat.

Imagem: O Globo

5 Replies to “Deixaram o Samba Enredo Morrer, Deixaram o Samba Acabar!”

  1. E o mais crítico sobre como o samba-enredo se tornou um nicho extremamente fechado é que Vila 2013 é uma grande obra, comparada por muitos como sendo do mesmo nível de composições lendárias.

    1. Eu já escrevi aqui antes: acho que o problema é mais a falta de divulgação que a qualidade dos sambas

        1. Pra pensar. Vila 2013 e Salgueiro 2014 tiveram divulgação considerável e morreram na praia em relação ao grande público. Por outro lado, sinceramente, não paro pra ouvir esses sambas também.

          1. Concordo com o Migão. O grande problema é a falta de divulgação dos mesmos e, sinceramente, não vi essa divulgação considerável que a Karine mencionou (nada comparado com o que fora feito com os sambas antigos).

            Querem um exemplo clássico? O samba do Sílvio Santos em 2001 é um dos mais “famosos” desse século. Não é raro ver gente comentando que este é o melhor samba da história da agremiação (ignorando as maravilhas da escola nos anos 80).

            Por que este é conhecido e os demais não? Por que essa obra foi divulgada em massa pela SBT, ao contrário do que ocorre com os sambas atuais. A Globo sequer transmite meia passada das obras, como querem que o público tenha interesse nelas?

Comments are closed.