Eis que a nossa primeira porta bandeira, guardiã de boa parte da história da Portela, se foi após 95 anos bem vividos. Não chegou a ser exatamente uma surpresa para mim, pois tinha ideia de seu estado de saúde delicado, mas é triste saber que um pedaço da Portela se foi.

Não pretendo, aqui, fazer um post laudatório. Isto outros podem fazer melhor.

Apenas queria rascunhar algumas reminiscências, em especial do ano em que nossos caminhos se cruzaram, 2004. Ela, como Madrinha da nossa bateria, a Tabajara do Samba; eu, como um louco que, com a cara e a coragem, me meti a desfilar como um de seus integrantes, tocando chocalho.

portela2004dFoi uma decisão ousada da diretoria comandada pelo ex-presidente Carlinhos Maracanã e tendo como seu diretor de carnaval o hoje amigo Marcos Aurélio Fernandes, o Marquinhos. Em uma era onde já havia uma profusão de beldades sem muita identificação com a escola e, muitas vezes, pagantes, foi uma ousadia e um pioneirismo, uma vez mais, da Portela: colocar uma senhora de 84 anos à frente de sua bateria.

Nos ensaios, a reverência era seguida de demonstrações de carinho e de orgulho por parte de Dona Dodô. Ela tinha fama de “rabugenta”, às vezes era, mas naquele ano encarnou perfeitamente a realeza com seus afilhados.

Seu exemplo nos incentivava. Como reclamar de cansaço nos ensaios se ela, no alto de sua magnanimidade, jamais se queixava? Aquele foi um ano complicado para a “Tabajara”, com a troca de seu comando a 45 dias do desfile, mas em momento nenhum as incertezas e as mudanças no trabalho afetaram o nosso espírito.

No dia de sua coroação, minha posição na formação dos ritmistas me permitiu um momento único: quando a bateria se abriu ao meio para que ela passasse e “abençoasse” seus afilhados eu acabei ficando em uma das pontas. Por algum motivo insondável ela parou à minha frente e eu meneei a cabeça em sinal de respeito, como se eu estivesse, naquele momento, representando a “turma” de ritmistas de 2004. Beijei sua mão e os ritmistas irromperam em aplausos.

probeDevo à Dona Dodô, aliás, a única vez em que enfeitei – melhor seria dizer assustar – uma capa de jornal. Na quarta feira antes do carnaval o jornal O Dia fez uma matéria reunindo a madrinha de bateria mais velha, Dona Dodô, e a mais nova, Raíssa – ainda hoje na Beija Flor.

Como prêmio pela minha assiduidade e responsabilidade, fui escolhido pelo então Mestre Mug – abraço, meu comandante! – para representar a bateria da Portela na sessão de fotos realizada então, na nossa quadra. Uma das fotos – que está neste post – foi parar na capa do jornal do domingo de Momo daquele ano. Não estranhe o leitor: tinha 30 quilos a menos… Uma curiosidade é que o hoje Mestre Nilo Sérgio era diretor da “Tabajara” à época.

Curiosamente, temos um ponto em comum: foi tanto dela como minha a única passagem pela “Tabajara do Samba”, como a bateria da Portela era conhecida. Dona Dodô voltou à sua “lojinha” – depois retirada por ocasião da reforma da quadra a mando do então presidente Nilo Figueiredo, de triste memória – e à coordenação da sua Ala das Damas, de longa história na Águia.

Parêntese: nossa atual rainha, Patrícia Nery, é um exemplo de dedicação à causa, aos ritmistas e à escola. Não irei comparar importâncias, são magnitudes diferentes, mas o portelense está bem representado.

portela2004eAno passado, em conversa com o também colunista Aloisio Villar, brincávamos dizendo que Dona Dodô, do alto de seus 94 anos, passava pela avenida sem se queixar de dores ou precisar de gelo e anti-inflamatórios, como nós dois já demandamos. Ela chegou aos 95 anos com vitalidade quase até o fim, sendo um exemplo aos mais novos também sob este aspecto.

Vi Dona Dodô pela última vez na final do samba, em outubro. Já um pouco debilitada, mas altiva, orgulhosa, no estrito sentido do que é a Portela. Graças a Deus seu sofrimento foi muito curto até voltar aos braços do Senhor, ou seja lá o nome que o leitor der.

O certo é que, a partir de hoje, temos mais um Orixá azul e branco. Que, do alto do céu, possa nos guiar junto a Paulo, a Natal, Candeia, Manacéia e a todos os componentes do panteão azul e branco.

Descanse em paz, Dona Dodô.

P.S. – não sei se o leitor irá entender, mas queria fazer um comentário: é um motivo de orgulho para mim poder dividir a história da Portela com gente de tamanha importância como Dona Dodô, Monarco, Noca e tantos outros que fizeram a Portela ser o que é.

Sou apenas um especialista em orçamento, minha parcela de contribuição é um grão de poeira na longa estrada azul e branca, mas me orgulha saber que poderei contar a meus netos que ajudei na reconstrução do gigante azul e branco, comandada com brilhantismo pelo Presidente Serginho Procópio e pelo vice presidente Marcos Falcon. Isso não tem preço – e me orgulha demais.

7 Replies to “Dona Dodô”

  1. Excelente texto, Migão.

    E acrescento ainda que, além do aspecto humano, claro, estamos perdendo também um pedacinho da memória do samba carioca, da cidade, do subúrbio e da cultura popular.

  2. Mesmo ela não querendo, não há como ela ir no anonimato. A Portela está de luto, o samba está de luto, todos estão de luto. Apenas lamento que a madrinha de todos nós não possa ter visto a nossa Portela, mais dela do que de qualquer outro, voltar a vencer antes de partir.

    Salve Dona Dodô! Descanse em paz e de onde estiver continue protegendo o manto azul-branco da Portela para que ele continue a desfilar triunfal sobre o altar do Carnaval.

  3. Pedro, que história bonita e que análise ótima! Sempre comento do orgulho que sinto por, na Portela, está próxima de trechos da nossa cultura personificados em seus baluartes e o quanto de experiência, conhecimento eles com generosidade compartilham conosco.

    Vi Dona Dodô pela última vez no dia 08 de dezembro, percebi-a um tantinho cansada, mas nem me passou pela cabeça de ela ir habitar um azul e branco mais alto sem ver a vigesima segunda estrela brotar no estandarte portelense, mas agora entendo: Ela foi pessoalmente buscar!

    Parabéns pelo texto! E muito bem observado com relação à Patricia Nery, realmente grande representante da dignidade portelense no seu segmento.

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